“Brexit”: I'm so so sorry

As ruas encheram-se de bandeiras inglesas com a cruz de São Jorge tão vermelha em fundo branco, assim aumentando ainda mais o fosso entre nacionalistas e quem não tem razões nenhumas para estar orgulhoso.

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LUSA/ANDY RAIN

24 de Junho de 2016. Manhã. Talvez. Não havia certezas (ainda não há). Atordoados com o resultado do referendo, incrédulos, ainda sem saber bem o que pensar, ou como pensar, e já os telemóveis dos dois, o meu e o da Ana, se enchiam de mensagens em inglês de quem, apesar de ser, e por ser britânico, não deixa de ser nosso amigo. “I’m so so sorry!”, disse a Sandy, a minha antiga head teacher. “Can’t believe in this buddy”, diz o Matt, que ensinou matemática na minha escola e depois na escola da Ana. “I am sorry for all of this. Are you alright?”, acrescentou o Alfie, o meu antigo head of Science. E com a Ana a mesma coisa entre amigos e colegas, igualmente pasmos mas, acima de tudo, envergonhados com um resultado que envergonha um país, qualquer país. 

Os nossos amigos vivem em Londres e Londres, como todos sabem, votou em massa pela permanência na União Europeia. Os nossos amigos votaram para ficar, não por estarem de acordo com a União Europeia, não estão, mas porque o voto, bipolar, dividiu-se não entre pró e contra a União, mas entre pró e contra a imigração, como se os imigrantes fossem o pior de um país e as fronteiras sempre abertas a fonte de todo o mal.

Não é bem assim, nunca foi e não será. E este bom senso só é possível quando se cresce, vive e morre numa das cidades do mundo onde mais se respira multiculturalidade. 10 milhões de pessoas de todos os cantos num lugar só, num caldo de culturas onde o propósito é um e um só: viver. Em comunidade, integrado, aceite, parte de um todo, uma torre de Babel por construir mas bem presente nas ruas, escolas, parques, museus, nos transportes, nas pequenas e grandes superfícies, ao virar da esquina, no pub, no café, em todo o lado.

Votar para sair, para quem mora em Londres, seria sempre um contra-senso, a negação do ser, de um modo de vida, como se fosse possível fugir de nós próprios, não é, não é possível, não é suposto e, no entanto, foi.

E se, por um lado, não renegámos as amizades criadas e nutridas ao longo de tanto tempo, por outro não foi possível evitar este sentimento de nos sentirmos traídos por quem há tanto tempo se dizia nosso igual. As ruas encheram-se de bandeiras inglesas com a cruz de São Jorge tão vermelha em fundo branco, assim aumentando ainda mais o fosso entre nacionalistas e quem não tem razões nenhumas para estar orgulhoso. Não agora, não nesta escolha, não assim na brutidade e ignorância de quem reclama como seu o que sempre foi de todos e nós não lhes devemos nada. Nada, e tudo o que temos foi conquistado no suor, sangue, lágrimas, na saudade, pelo trabalho.

E apesar dos pedidos de desculpa, apesar dos pedidos de perdão, a raiva nos punhos e dentes diante da desilusão de quem se sente enganado, de quem perde o tapete por debaixo dos pés ao mesmo tempo que nos cravam uma faca nas costas e legitimam a xenofobia e o racismo latentes, adormecidos na ignorância de quem nunca foi educado.

O Reino Unido ainda vive no feudalismo, ainda vive o feudalismo, e a sociedade de classes está bem presente. A mobilidade social é, por conseguinte, curta, estreita, estéril e parca de modo a garantir às classes dominantes a permanência no poder e o usufruto das terras. Ao permitir ao povo um dizer, um voto, o povo votou e votou em protesto, contra as fábricas fechadas, contra o desemprego, a precariedade, a imigração barata e explorada. E até aqui tudo bem, excepção feita ao facto de os britânicos, engordados por um sistema de apoio social ao longo de gerações, estarem habituados a ter imigrantes a trabalhar no seu lugar. Pelos britânicos, para os britânicos — mas não com os britânicos.

Como entretanto os apoios sociais são cada vez menos por estes lados, o voto, este voto, não deveria ter sido uma surpresa. Londres, a faustosa Londres, não é o Reino Unido.

Sozinhos na sala relemos as mensagens e os pedidos de amizade numa outra língua que não a nossa. O sol vem dar lugar a um universo paralelo e bizarro. Respondemos às mensagens, uma a uma, com a certeza de que nada mais será como dantes. Nem a amizade.
 

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