Revoluções: alguns aspectos

Seria certamente absurdo dizer que as revoluções da nossa história politica nada mudaram mas seria igualmente absurdo dizer que mudaram tudo.

O conceito de revolução sugere a ideia de uma tabula rasa, ou seja, a crença de que tudo pode ser mudado. Os historiadores políticos circunscrevem cronologicamente o evento revolucionário mas os militantes que o executaram perpetuam-no no tempo como uma missão sempre inacabada que requer militância e sacrifício. Qualquer revolução é ameaçada por aqueles que a ela se opõem e pelas inevitáveis vicissitudes históricas que a assolam. Esta é, aliás, a principal razão da sacralização do evento revolucionário, da sua inscrição no ser colectivo como mito fundador: assegurar a lealdade ideológica dos crentes com a invocação da pureza do acto constitutivo e estabelecer uma referência moral. É vital respeitar os ideais e aqueles que padeceram em seu nome.

Não obstante a sacralização do evento revolucionário, a sua pureza ideológica é inevitavelmente posta em causa pelo passar do tempo e pelo ressurgimento de práticas e ideários do regime deposto e da cultura política que se pretende erradicar através da militância. É sabido que mudar uma cultura política demora muito mais tempo do que depor um regime. O acto e o processo revolucionário estão sujeitos a temporalidades distintas, uma sintética ou apoteótica, a outra dispersiva, isto é, futurista e, como tal, necessariamente contraditória. A resiliência da tradição, de tudo o que foi e ainda é, faz-se sentir no devir revolucionário, constituindo-se como “força reacionária.”

Da luta entre o velho e o novo surge o que Zygmunt Bauman chamou de “estado liminar (do latim limen)”, ou seja, um espaço fluído de contestação, um campo de batalha caótico e sempre indeterminado, onde a ordem deposta e ordem em construção se digladiam ferozmente, engendrando a mais debilitante indefinição que, não raramente, justifica a intervenção autoritária dos novos detentores de poder, movidos pelo dever messiânico de inscrever o novo na tradição. Desta inscrição sempre violenta emana o caos e volatilidade. É nesta “terra de ninguém” disputada que ocorre o derradeiro conflito entre o que é e o que será. Não raramente o que resulta desta infernal dialéctica social é uma amalgama bizarra da velha e da nova ordem.

A Revolução Russa de 1917 depôs um regime, iniciou mudanças dramáticas na sociedade russa mas não eliminou por completo o arquétipo do czar. Marx elegeu uma vanguarda, e não um Grande Líder, como agente da mudança histórica que preconizava. Não foi Lenine um czar do proletariado? Foi Lenine uma perversão herética da pureza doutrinária? Pergunta interessante, julgo eu. A relação de Moscovo com as regiões também não mudou substancialmente. Os plenipotenciários do czar foram substituídos pelos comissários do omnipotente partido. É certo que a ideologia que legitimava o novo poder mudou mas os meios institucionais do exercício do poder pouco mudaram. A Revolução Francesa dizimou a aristocracia mas as Grandes Écoles republicanas reinstituíram o elitismo na sociedade francesa.

Outras lógicas ideológicas, outros métodos de legitimação, outros efeitos da governação, mas alguns dos mais importantes elementos da tradição persistiram. Transfigurados, é certo, mas ainda reconhecíveis. A Revolução de Abril instituiu direitos sociais e liberdades individuais mas não erradicou a desigualdade e o corporativismo da sociedade portuguesa. Até o PCP, eternamente fiel ao internacionalismo, raramente se esquece do patriotismo nas suas proclamações. A tradição ainda se faz sentir entre os comunistas portugueses? Os revolucionários americanos insurgiram-se contra a monarquia mas não são poucos os historiadores políticos que se referem aos Kennedy e aos Bush como dinastias aristocráticas. Ou seja, todas as revoluções são eventos ambíguos e muitas vezes paradoxais. Seria certamente absurdo dizer que as revoluções da nossa história politica nada mudaram mas seria igualmente absurdo dizer que mudaram tudo. Os revolucionários tentam a todo o custo erradicar do glorioso processo revolucionário as cintilas remanescentes da sociedade deposta, tentando assim preservar a pureza do acto revolucionário. Só o que é puro e incorruptível pode ser sacralizado como mito. Tarefa ingrata, a deles. As revoluções são sempre compostas por crenças puristas e por contradições insanáveis. Todas as revoluções são paradoxais: tudo o que foi persistirá sempre em tudo o que é. Resta apenas saber sob que formas. As revoluções são cifras que devem ser cuidadosamente interpretadas. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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