O sono crítico

O que eu lhe invejo é o condão de só adormecer nas partes que não interessam.

Mais um filme, mais uma soneca. Acho que a Maria João e eu somos o único casal em que é a mulher que adormece no sofá. Ela é muito mais magra e muito mais nova do que eu. Eu bem que gostava de aprender a adormecer até porque é a maneira mais inteligente de reagir a um filme que nos aborrece.

Quando lhe digo isto ela responde que a culpa é dos filmes que eu escolho, chatos, lentos e só com homens. Mas ela também adormece com mulheres.

O que eu lhe invejo é o condão de só adormecer nas partes que não interessam. É como se ela estivesse a montar o filme. Em vez de dizer "esta cena não é necessária" e cortá-la com a tesoura, fecha os olhos e só acorda quando aparece uma parte mais interessante.

É significativo que pode dormir dez ou quinze minutos mas, quando acorda, nunca quer voltar atrás, para ver a parte do filme que perdeu: "Deus me livre!"

O adormecer não tem nada a ver com o barulho. Adormece durante ruidosos tiroteios. Ela explica que, para efeitos hipnóticos, o que importa é uma certa repetição, uma qualidade monocórdica que tanto pode afligir diálogos como terramotos. Desde que sejam chatos ela dorme descansadamente.

Isto faz com que eu me sinta o otário que perdeu tempo a assistir a todas as monotonias, na ganância de não me escapar um só vagido de tédio.

Ao princípio ainda tinha a esperança de aprender a adormecer quando era ela a escolher o filme. Se a minha especialidade é filmes só com homens a dela é filmes sobre adolescentes revoltados. Mas não, não tive sorte nenhuma.

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