Erdogan e o Eldorado: por que razão a Turquia apoia Nicolás Maduro?

Nesta altura, chineses, russos e turcos são os únicos que podem dizer que o Eldorado existe mesmo na Venezuela.

1. No passado, nada excitou mais a imaginação dos conquistadores espanhóis das Américas do que o Eldorado (“El Dorado” em língua espanhola/castelhano). A procura da cidade mítica do ouro, que existiria no que mais tarde foi o Vice-Reino espanhol de Nova Granada — grosso modo, o actual território do Panamá, Colômbia, Equador e Venezuela —, alimentou numerosas e infrutíferas expedições.

Ocorreram entre o século XVI e o século XIX, algures entre a Colômbia e as Guianas. Edgar Allan Poe, o escritor oitocentista norte-americano de contos fantásticos, publicou em 1849 o poema “Eldorado”. Na época estava também em curso nos nos EUA/Califórnia uma corrida do ouro. Provavelmente, o poema terá sido escrito como reacção — e advertência — aos perigos e futilidade da procura do enriquecimento fácil e rápido. O poema descreve um gentil cavaleiro que, cavalgando incessantemente, sob o sol e a sombra, procurava o Eldorado. Mas com a sua longa e infrutífera busca foi perdendo as forças. Esse desalento, que sugere um final trágico, está patente na terceira estrofe, num belo jogo de palavras e de sonoridades, provavelmente intraduzível para português: “And, as his strength/ Failed him at length,/ He met a pilgrim shadow —/ ‘Shadow’, said he, / ‘Where can it be —/ This land of Eldorado?’”

2. Tal como imaginavam os espanhóis e outros europeus, nunca ninguém encontrou o Eldorado, por razões óbvias, sabemos hoje da sua inexistência. Mesmo sem Eldorado, a Venezuela é um país riquíssimo em recursos naturais — e não só em petróleo, onde tem as maiores reservas mundiais —, mas também em ouro, metal usualmente aceite como meio de pagamento a nível internacional. Em termos de recursos deste metal precioso, está no grupo dos países com maiores reservas por explorar no mundo, sendo as estimativas concretas variáveis.

Paradoxalmente, tudo isso não garante à Venezuela um elevado retorno financeiro. Pelo contrário, tal como acontece com o seu petróleo (de tipo pesado), falta-lhe a tecnologia para refinar e certificar o ouro. Em ambos os casos, a escassez e a obsolescência dos recursos tecnológicos implica uma perda de retorno, que fica nas mãos de outros. Parte importante do ganho está associada às operações de refinação e de transformação.

Ao mesmo tempo, há um grave problema ambiental que a exploração desses recursos levanta. O Governo de Nicolás Maduro criou em 2016 a Zona de Desenvolvimento Estratégico Nacional Arco Mineiro do Orenoco. Anteriormente, tinha já criado a Faixa Petrolífera do Orenoco na margem Norte do rio. Importa notar que o Orenoco é um dos grandes rios da América do Sul e do mundo, com a terceira maior bacia hidrográfica do continente americano. A exploração dos recursos minerais e petrolíferos afecta, de forma directa ou indirecta, todo o ecossistema da região. Num planeta já cheio de problemas ecológicos e com a deflorestação da Amazónia a ocorrer mesmo lado, no Brasil, a degradação ambiental do Orenoco é mais um caso para grave preocupação.

3. No caso do petróleo, a China — e ultimamente a Rússia, via Rosneft, a empresa petrolífera estatal — são os dois maiores amigos (de conveniência) dos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Sucederam assim ao vazio deixado pelo “império” — os EUA — no controlo, directo ou indirecto, da economia venezuelana (a soberania é uma miragem). Cada uma à sua maneira tem retirado vantagens da situação económica e política conturbada na Venezuela, em compras ao desbarato, a troco de um vital financiamento em divisas.

Se essa parte é bem conhecida a nível internacional, já a venda do ouro passa mais despercebida. As sanções económicas que foram impostas pelos EUA dificultaram a sua venda nos mercados internacionais. Aqui, a solução alternativa foi encontrada por Nicolás Maduro no Médio Oriente. Costuma afirmar-se que a necessidade aguça o engenho. No Médio Oriente — Turquia incluída —, isso parece ser bastante comprovável. Existe aí uma especial criatividade para evadir sanções económicas e financeiras, contornando mecanismos legais internacionais.

A Turquia parece ser um dos Estados que se especializou nessa área, sobretudo durante a era Erdogan. Lucrativos negócios parecem ter-se desenvolvido para tornear as sanções aos fluxos financeiros oriundos de países árabes, suspeitos de financiar o islamismo-jihadista após o 11 de Setembro de 2001. Tal como para contornar as sanções internacionalmente aplicadas ao Irão, devido ao seu programa nuclear. (Estas foram gradualmente eliminadas a partir do Acordo de 2015, embora em 2018 tenha ocorrido um volte-face dos EUA nessa matéria.)

4. É sempre curioso observar a amizade (improvável) entre um conservador-islamista —Recep Tayyip Erdogan ­— e um socialista-revolucionário bolivariano — Nicolás Maduro. O facto de Erdogan ser inimigo de revolucionários secularistas e socialistas (no seu país) — é o caso de Abdullah Öcalan, fundador e do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), detido na prisão — e de Nicolás Maduro ser inimigo frontal da oposição conservadora (interna), que acusa de querer destruir a revolução (e coloca também na prisão) —, não parece causar qualquer perturbação nessa amizade.

A questão é ainda curiosa devido ao facto de a América Latina estar muito afastada das áreas tradicionais de influência da Turquia, centradas no Sudeste europeu, Médio Oriente, Mediterrâneo Sul e Ásia central. A Venezuela, que idolatra a figura Simón Bolívar e se afirma socialista, nada tem a ver em termos históricos e culturais com uma Turquia herdeira do Império Otomano e dominadora, na sua própria lógica imperial e colonial, de outros povos. Aliás, se há alguma proximidade, é exactamente de sentido inverso.

Existe entre os povos balcânicos (gregos, sérvios, montenegrinos, etc.), ou árabes (sírios, libaneses, iraquianos, etc.), dominados pelos otomanos/turcos, que lutaram contra a opressão do Império Otomano, tal como fez Simón Bolívar contra o Império Espanhol na América do Sul, em inícios do século XIX. Não é por acaso que as populações que tipicamente emigraram para a América Latina dos antigos territórios otomanos são árabes cristãos ou de outras minorias da Síria / Líbano. Na Venezuela, há o caso de Tareck El Aissami, o actual Vice-Presidente para a Economia, é de ascendência síria e da minoria herética drusa — o seu pai tinha ligações ao Partido Baath do Iraque de Saddam Hussein. Para além da procura de melhores condições de vida, essas populações fugiam de perseguições religioso-políticas num império islâmico governado pelos sultões turcos/otomanos. Ironia: esse é um modelo que Erdogan admira.

5. No actual contexto político, com Nicolás Maduro a lutar desesperadamente pela sobrevivência do seu regime, Recep Tayyip Erdogan encontrou um Eldorado na Venezuela. A Turquia assegura a refinação e certificação do ouro — a qual deixou de ser efectuada na Suíça —, permitindo evadir as sanções dos EUA. Nada de (a)normal entre aliados da NATO. Em troca, em 2018, exportou para a Venezuela mais de 60 milhões de dólares em alimentos. Este abastecimento assegura a maioria dos produtos alimentares distribuídos pelo Comités Locais de Abastecimento e Produção, um programa governamental de apoio às populações mais carenciadas.

Todavia, a ironia é que a Turquia também não produz muitos desses alimentos. Importa-os de vários outros países para depois os reexportar para a Venezuela, num negócio bastante lucrativo, claro. Ao mesmo tempo, o governo de Nicolás Maduro cedeu quatro milhões de hectares de terra para produção agrícola onde participam empresas turcas.

A Venezuela pode ter um Eldorado no seu território — em ouro e em petróleo —, mas para o cidadão comum essa riqueza vai continuar a ser uma miragem. Uma ilusão mortífera, tal como foi para muitos no passado que, em vez da mítica cidade em ouro, encontraram fome, doenças e morte. Nesta altura, chineses, russos e turcos são os únicos que podem dizer que o Eldorado existe mesmo na Venezuela.

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