O regresso ao padrão ouro?

É lógico pensar-se que países como a Rússia e a China considerem que o dólar e os títulos de dívida do tesouro dos EUA não serão uma reserva de valor segura, o que afecta o papel do dólar como moeda de reserva internacional e o actual regime monetário internacional.

É surpreendente constatar que Donald Trump acabou apenas de celebrar o segundo aniversário da sua presidência a 20 de Janeiro de 2019. A sua administração tem-se caracterizado por uma revolução permanente que parece pretender não deixar pedra sobre pedra na arquitectura global … quase uma estratégia deliberada de caos.

De facto, a administração Trump parece considerar que (quase) todos os acordos negociados por anteriores administrações foram maus acordos para os EUA. Outra faceta desta administração é que o seu espaço de actuação tem uma forte componente de extraterritorialidade: as suas decisões têm de ser cumpridas mesmo que respeitem a pessoas, empresas ou até governos de outros países.

Nesse sentido da revolução permanente, tem sido uma administração “eficaz”: colocou em causa o acordo de Paris sobre as alterações climáticas; abandonou o acordo nuclear com o Irão; alterou para pior a forma como os imigrantes nos EUA e os muçulmanos que pretendem entrar nos EUA são tratados; abandonou os acordos de comércio livre NAFTA (com o Canadá e o México) e Transpacífico; “suspendeu” a proposta de “parceria transatlântica” com a União Europeia; o presidente Trump questionou a necessidade da NATO e os EUA exigiram aos seus parceiros um aumento dos respetivos orçamentos militares; os EUA abandonaram o Conselho de Direitos Humanos da ONU; e a semana passada, suspenderam o acordo INF com a Rússia, o qual assegurava a destruição e o não desenvolvimento nem instalação de mísseis de médio alcance baseados em plataformas de lançamento terrestres. Esta lista de acordos rasgados não é exaustiva.

Claro que a “eficácia” da administração Trump é sempre muito relativa, porque, como se sabe, é mais fácil “desmantelar” aquilo que existe do que construir.

Na frente económica, o modelo da globalização das últimas décadas está sob ataque…

… e o país que lidera o ataque a esse modelo é precisamente o seu principal proponente, os EUA.

O actual modelo de globalização tem as suas origens no que se pode designar o regime Bretton-Woods v2.0, que resulta da decisão da administração Nixon de abandonar, em 1971, a convertibilidade do dólar para o ouro, devido à diminuição acentuada das reservas de ouro dos EUA que se verificava até essa data.

Esse modelo de globalização tem duas dimensões importantes.

Em primeiro lugar, uma redução substancial das taxas aduaneiras acompanhada por acordos de comércio livre, que conduziu ao desenvolvimento, a nível global, de grandes multinacionais com economias de escala sem precedentes, lideradas por empresas americanas, como por exemplo, a Microsoft, a Google, a Amazon, a Apple, mas também de outras multinacionais de outros países, menos conhecidas, mas não menos importantes, como a Huawei, a ZTE, a SWIFT, a Vale e a Rusal.

Em segundo lugar, a utilização do dólar como moeda fiduciária de reserva internacional, utilizada em transacções comerciais internacionais, nomeadamente de petróleo, mas também para acumular poupança externa de países que adoptam uma estratégia mercantilista de desenvolvimento (acumulação de excedentes nas contas externas), de países produtores de petróleo, ou de países com elevada instabilidade económica e financeira.

O regime de sanções económicas tornou-se eficaz

Nos últimos dois anos, os EUA aplicaram sanções económicas a países e empresas, nomeadamente Irão, à produtora de alumínio russa Rusal, às multinacionais de telecomunicação chinesas ZTE e Huawei, tornando o regime de sanções económicas que já existia sobre países como Cuba e Coreia do Norte muito mais eficaz.

Por exemplo, um empresário europeu que pretendia importar tabaco cubano viu o seu dinheiro confiscado pelo Governo dos EUA, porque realizou a transacção em dólares através do sistema de transferências bancárias SWIFT que, note-se, está sediado na Bélgica.

A ZTE, uma enorme multinacional chinesa, esteve em risco de colapsar, porque violou as sanções americanas à Coreia do Norte ao vender-lhe sistemas de telecomunicações.

E a maior parte das multinacionais europeias, sob a ameaça de sanções dos EUA, deixaram de realizar transacções comerciais com o Irão.

Ou seja, a União Europeia e a China não têm qualquer papel na formulação das políticas da administração Trump e, no entanto, as empresas desses blocos económicos têm de cumprir as políticas americanas como se de lei nacional se tratasse.

O modelo de globalização actual não é robusto

Em resultado, decisões discricionárias do Governo dos EUA, ou dos governos da China, da Rússia e da União Europeia, podem colocar em causa a actividade económica crucial do mundo desenvolvido. 

Nenhuma grande economia ou grande multinacional se pode permitir estar tão dependente, de decisões arbitrárias de políticos (ou de gestores) de uma outra potência económica.

De parte a parte, é natural e compreensível a desconfiança em relação às multinacionais dos outros grandes blocos.

O que tem implicações para o processo de globalização.

O dólar deixou de ser seguro

No passado, o Governo dos EUA ou tribunais dos EUA congelaram fundos denominados em dólares detidos pelos governos do Irão e da Argentina, por exemplo. Na semana passada, com o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente da Venezuela pelo Governo dos EUA, o acesso do Governo venezuelano aos seus activos financeiros noutros países, nomeadamente às reservas de ouro junto do Banco de Inglaterra, foi bloqueado.

Em consequência, é lógico pensar-se que países com elevadas reservas externas, como a Rússia e a China, considerem que o dólar e, por inerência, os títulos de dívida do tesouro dos EUA, não serão uma reserva de valor segura, o que afecta irremediavelmente o papel do dólar como moeda de reserva internacional e o actual regime monetário internacional.

Mas o dólar não será substituído por outras moedas fiduciárias, como o euro ou o yuan, porque também os respectivos governos, à imagem dos EUA, podem aplicar sanções unilaterais, confiscando essas reservas. E, sobretudo, porque é fundamental que o bloco económico que assumisse esse papel estivesse disposto a registar défices na sua balança corrente, o que nem a União Europeia nem a China parecem dispostos a fazer.

Num mundo cada vez mais desconfiado e inseguro, o regresso a uma “relíquia bárbara”…

         

        Na verdade, o padrão ouro já é uma relíquia bárbara.
         J.-M. Keynes (1923), A Tract on Monetary Reform, p. 172.

Vivemos tempos interessantes, mas que não devemos aceitar como amaldiçoados. É uma era de transição entre potências económicas, com o declínio relativo dos EUA e a ascensão da China. Os EUA, compreensivelmente, lutam e procuram evitar esse declínio relativo mas, afigura-se que ao fazê-lo desta forma, não o travam antes o aceleram.

Um dos sinais dessa transição será, como se referiu acima, o declínio do dólar como moeda de reserva internacional. As outras moedas candidatas não parecem reunir condições para se transformarem em moeda de reserva internacional.

Se um novo regime monetário internacional não for estabelecido, a alternativa provável, o regresso do ouro como instrumento de reserva internacional, teria provavelmente consequências negativas para a economia mundial, na medida em que seria, indirectamente, um regresso ao padrão ouro, muito menos eficiente do que o sistema monetário da actualidade.

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