Um falso poema de Sophia que se tornou viral

Se procurar poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen na Internet, é quase certo que cairá nuns versinhos intitulados O mar dos meus olhos. Estão transcritos em milhares de páginas, são comentados em artigos académicos, até os traduziram para alemão e holandês. O poema, diga-se, é fraquinho, mas Sophia não tem culpa: nunca o escreveu.

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Sophia de Mello Breyner Andresen fotografada no seu jardim em 1999 Adriano Miranda
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Um dos manuscritos de Sophia Daniel Rocha
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Maria Andresen Sousa Tavares argumenta: “há alguma semelhança de temas, mas a escrita é diferente” Miguel Nogueira

Há anos que Maria Andresen Sousa Tavares, filha de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), assiste, exasperada, à imparável proliferação, na Internet, de um poema sistematicamente atribuído à sua mãe, mas que esta nunca escreveu. Tem procurado desfazer o equívoco, mas é uma luta desigual. Uma rápida pesquisa no Google, teclando o título do poema entre aspas, indica cerca de 14 mil ocorrências. Verificámos as primeiras centenas e em todas elas, sem excepção, o texto aparece atribuído a Sophia.

E a partir da Internet, é quase inevitável que esta criatura de mãe incógnita comece a saltar para a página impressa. Ainda há poucos dias a filha de Sophia conseguiu evitar in extremis que O Mar dos Meus Olhos fosse publicado numa antologia pessoal de um advogado do Porto. Como o livro, embora impresso, não fora distribuído, ainda houve tempo para proceder à substituição, deveras vantajosa, deste apócrifo de qualidade mais do que duvidosa por um poema maior da lírica portuguesa de todos os tempos: Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal.

E não foi esta, aliás, a primeira vez que O Mar dos Meus Olhos esteve prestes a partilhar o prestígio de uma lombada com poemas de autoria mais canónica. “Um jornalista cultural pediu-me para o incluir numa antologia, porque era, dizia ele, o poema da minha mãe de que gostava mais…”, conta Maria Andresen Sousa Tavares.

Também é verdade que Sophia está longe de ser a única vítima, ou sequer a mais recorrente, da profusão de textos erradamente atribuídos que circula na Internet, e que adquire uma dimensão ainda mais avassaladora se incluirmos citações de aforismos, ditos espirituosos e afins. Na literatura portuguesa, o autor mais sacrificado é seguramente Fernando Pessoa, a ponto de já existir mesmo uma página de Facebook exclusivamente dedicada a denunciar apócrifos do autor do Livro do Desassossego

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Sophia Daniel Rocha

Se em vários casos tem sido possível identificar os verdadeiros autores de textos que correm como sendo de Pessoa, ninguém até hoje parece ter vindo reclamar a autoria do suposto poema de Sophia. Circunstância que tenderá a alimentar a suspeita de que, na sua origem, estaria talvez um qualquer apontamento manuscrito da autora que alguém tivesse transcrito mal, ou ao qual pudesse mesmo ter acrescentado alguma coisa da sua própria lavra. Um cenário que Maria Andresen Sousa Tavares descarta, quer por nunca ter topado, na sua longa intimidade com os papéis da mãe, com nada que pareça poder estar na base deste poema, quer porque, argumenta, “há alguma semelhança de temas, mas a escrita é diferente”.

Um apelo desesperado

Também Carlos Mendes de Sousa, grande conhecedor da obra de Sophia – está neste momento a preparar para a Assírio e Alvim um volume que reunirá toda a sua prosa de ficção –, duvida de que O Mar dos Meus Olhos decorra de algo que a autora tenha efectivamente escrito. O ensaísta preparou, com a colaboração de Maria Andresen Sousa Tavares, o volume da Obra Poética de Sophia que a Caminho lançou em 2010 (a edição mais actualizada é a que a Assírio & Alvim publicou em 2018) e também não tem memória de se ter cruzado com estes versos. “Parece-me mais provável que isto seja obra de um epígono”, sugere. De facto, reconhece, parece ter havido a intenção de adoptar alguns tópicos geralmente associados à lírica de Sophia, como o mar ou as praias, mas “a voz não é a dela”.

Para o leitor avaliar por si próprio, aqui fica o poema: “Há mulheres que trazem o mar nos olhos/ Não pela cor/ Mas pela vastidão da alma// E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos/ Ficam para além do tempo/ Como se a maré nunca as levasse/ Da praia onde foram felizes// Há mulheres que trazem o mar nos olhos/ pela grandeza da imensidão da alma/ pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens.../ Há mulheres que são maré em noites de tardes.../ e calma”.

Não faltam motivos para se suspeitar de que Sophia dificilmente poderia ter escrito boa parte destes versos. Por lamechices no estilo de “trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos”, por redundâncias enfáticas como “pela grandeza da imensidão da alma”, ou ainda pelo involuntário prosaísmo de certas formulações – “Não pela cor/ Mas pela vastidão da alma” –, que o afinado ouvido musical da autora dificilmente deixaria passar.

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Maria Andresen Sousa Tavares Miguel Nogueira

Por isso mesmo, se não espanta que estes versos encharquem a blogosfera, muitas vezes acompanhando postais ilustrados de praias ao crepúsculo ou desenhos fantasistas, já surpreende encontrá-los em sites dos quais o internauta desprevenido poderia esperar um mínimo de fiabilidade, como o Portal da Literatura, que não apenas transcreve o poema, como lhe acrescenta a irresponsabilidade de indicar uma falsa referência bibliográfica: “Em Obra Poética (Ed. Caminho, 2010)”. Trata-se da já referida edição organizada por Carlos Mendes de Sousa, que se folheará em vão à procura de O Mar dos Meus Olhos

A própria referência bibliográfica tornou-se viral e está hoje replicada em inúmeras páginas da Internet. A autora de um blogue inteiramente dedicado a Sophia assume ter ido buscar o poema ao Portal da Literatura, ainda que depois a “análise” do dito lhe deva ser inteiramente creditada. “Há quem diga que os olhos são o espelho da alma, ou seja, um olhar pode revelar quem é realmente aquela pessoa. É seguindo essa linha de pensamento que Sophia de Mello conduziu o poema acima”, explica a blogger, saudada por um leitor entusiástico: “Ótima análise de um poema bastante profundo em sua essência inicialmente fácil de compreender, mas com reflexões mais trabalhadas dos desejos e sensações humanas”.

Mal sabia que tinha a papinha toda feita nesta página a aluna que lançou este desesperado apelo no site brasileiro Brainly: “Por favor preciso de ajuda!!! Alguém pode me ajudar a analisar o poema O Mar dos meus olhos, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Indicando o tema, o assunto, os recursos expressivos e a sua explicação e pudendo [sic] utilizar versos do poema e a mensagem do poema. Obrigada!!”

Do nudismo ao paranormal

O facto de a transcrição do texto vir acompanhada da indicação do livro onde este supostamente teria sido publicado, como acontece no Portal da Literatura, contribui certamente para que o leitor menos familiarizado com a obra de Sophia não questione a sua autoria. E há que reconhecer que o poema cativa gente de todas as idades. Não fora o detalhe de não ter sido escrito por Sophia e teríamos de o considerar um candidato credível à short list dos seus poemas mais populares. Abre, aliás, uma lista dos seus “15 melhores poemas” proposta pelo site Notaterapia, que por acaso também encerra com outro texto falsamente atribuído: Poema Azul. Como Maria Bethânia inclui esta canção de Sérgio Ricardo num disco onde também interpreta alguns poemas da escritora portuguesa, pronto, Sophia passou a ser autora de versos como estes: “E a lua cheia/ Que prateia os cabelos do meu bem”.

É impossível dar sequer uma reduzida amostra da ecléctica propagação de O Mar dos Meus Olhos. Serve de legenda, no YouTube, ao vídeo de uma jovem surfista, mas também surge numa página de promoção do nudismo, Alma Naturista, ou no site Portugal Paranormal, aqui talvez não inteiramente deslocado, ou num jornal da Associação de Solidariedade Social dos Trabalhadores e Reformados da EDP e da REN, escolhido por uma associada para preencher a rubrica “Um poema que eu amo”, ou ainda como epígrafe de uma tese de doutoramento sobre a Estrutura genética populacional do camarão rosa (…) nas costas sul e sudeste brasileira.

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A assinatura da escritora num dos muitos manuscritos que integram o seu espólio, doado pela família à Biblioteca Nacional Daniel Rocha

Bastante menos desculpável é que uma revista académica brasileira ligada aos estudos literários, como a Intertexto, publique um artigo – A Representação Feminina em Poemas de Florbela Espanca, Maria Teresa Horta e Sophia de Mello Breyner Andresen –, co-assinado por um “mestre e doutor em Letras, área de Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Estadual Paulista”, no qual se elege O Mar dos Meus Olhos como exemplo da “grande força expressiva” e da “qualidade inquestionável” da poesia de Sophia.

“O texto poético escolhido para esta parte de nosso estudo, e que transcrevemos abaixo, faz parte da coletânea intitulada Obra poética (2010)”, escrevem os autores do artigo. Se replicar referências bibliográficas presumivelmente encontradas na Internet sem se dar ao trabalho de as verificar não constitui propriamente uma prática académica recomendável, esse é ainda um pecadilho menor quando comparado com a quase improvável insensibilidade literária deste “doutor em Letras”.  

Mas há muitas páginas ligadas ao ensino que também transcrevem o poema, de projectos de bibliotecas escolares a uma newsletter da “coordenação do ensino de Português do Reino Unido e Ilhas do Canal”, datada do final de 2016, na qual uma professora responsável pela organização de um recital de poesia em Jersey explica que um dos poemas que escolheu para serem ditos pelos alunos foi O Mar dos Meus Olhos

E há muitos outros exemplos de que a divulgação do poema também se faz por via oral. Uma reportagem da gala de entrega de 2015 dos Prémios Sophia (patrona um tanto desconcertante destes prémios destinados ao cinema português), que pode ler-se online na revista ESCS Magazine, da Escola Superior de Comunicação Social, conta-nos que a cerimónia incluiu a leitura de O Mar dos Meus Olhos pela voz de uma conhecida actriz. E num número de Março de 2018 do jornal Entre Margens, de Vila das Aves, lemos uma descrição de uma peça levada a cena pelo Teatro Aviscena, na qual uma “secretária humilde e servil”, após “dar um murro na mesa” e dizer “basta” ao patrão, “declama O mar dos meus olhos de Sophia de Mello Breyner”.

E a coisa começa a ganhar proporções de conspiração internacional, com traduções do poema para várias línguas, criando o risco de que o primeiro contacto de um jovem leitor estrangeiro com a poesia de Sophia seja esta bem-intencionada mediocridade. No site Zuca Magazine pode ler-se o poema em português e em neerlandês, a ilustrar um breve apontamento bio-bibliográfico que descreve Sophia como a “grande dame” da poesia portuguesa do século XX. E também aqui se informa erradamente que o poema teria sido publicado pela Caminho na edição de 2010 da Obra Poética da autora.

Ainda mais inventivo é o site We Love Lisbon, aparentemente destinado a potenciais turistas de língua alemã, que se ufana de propor as melhores dicas para visitas a Lisboa e arredores. Uma dessas sugestões é o Miradouro da Graça, que hoje se chama Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen”. A escritora, explica o We Love Lisbon,  “vinha aqui frequentemente encontrar inspiração para os seus poemas”. E antes de apresentar, em português e em tradução alemã, o incontornável apócrifo de que nos vimos ocupando, conclui: “Foi, assim, na proximidade deste miradouro que ela escreveu O mar dos meus olhos”.

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