O interior e os seus mitos

Não faz qualquer espécie de sentido os poderes públicos provocarem e depois subsidiarem a interioridade!

São duas políticas contraditórias. Talvez inúteis, seguramente prejudiciais. A primeira: revitalizar o interior e fazer com que as pessoas “criem raízes” onde nasceram. A segunda: liquidar instituições e fechar serviços públicos.

Falamos do interior, fantasia que, desde há muitos anos, ataca grande parte dos políticos. Interior que começa por pecar por defeito de concepção. Onde começa e onde acaba o interior? Visto de São Petersburgo, Portugal é costa e praia. Visto de Madrid, o litoral vai até Viseu. O interior é um conceito, não uma realidade. Segundo os mais recentes critérios, o interior já inclui áreas litorais no Centro e no Alentejo. Na verdade, interior é uma entidade artificial que define áreas mais agrárias do que industriais, mais rurais do que urbanas, pouco letradas e menos instruídas, com baixo produto e reduzida produtividade, por vezes distantes dos grandes centros urbanos, com habitat disperso, rendimentos baixos, pouca natalidade, muita emigração, pouca imigração, elevadas percentagens de reformados, poucos serviços de saúde e de educação.

É para este interior que se dirigem as atenções dos governantes e autarcas, sobretudo candidatos. Pensam que prometer mundos e fundos ao interior dá votos e aquece os corações. É muito provavelmente mentira. Estranha-se a facilidade com que um candidato, em princípio com estudos feitos, é capaz de afirmar que tem políticas para “fixar as populações”, uma das mais odiosas expressões utilizadas correntemente, só comparável àquela outra que diz que as pessoas devem “criar raízes onde nasceram”, baixo pensamento de que só urbanos são capazes.

No discurso político, mas também académico, o termo mais dramático é o da desertificação. O que não é justo. Na verdade, esta expressão traduz outro fenómeno, mais radical, mais climático e geográfico. Desertificação é o processo pelo qual regiões perdem fertilidade, recursos, água e, com a aridez, os solos transformam-se em desertos, para ser mais directo. Aquilo de que se deveria falar, a propósito do interior, é de despovoamento: êxodo da população e declínio da demografia.

O despovoamento está ligado a múltiplos fenómenos. Por exemplo, o esgotamento de recursos naturais, o declínio demográfico, a mudança de padrões económicos e a decadência da indústria ou da agricultura. São muitas as razões que levam ao despovoamento, umas boas, outras más! Entre as boas, a procura de melhores empregos, de mais cultura, de ensino superior e de novas actividades noutras paragens. Numa palavra, a procura de oportunidades.

Há, no entanto, entre as causas de declínio do “interior”, uma que deve ser analisada: o empobrecimento institucional das regiões e a destruição deliberada de serviços públicos. Forças Armadas, polícias, escolas, centros de saúde, hospitais, maternidades, centros de lazer e cultura, serviços e extensões ministeriais, bancos e agencias bancárias, agentes de seguros, repartições da segurança social, correios, serviços das contribuições e impostos, das estradas, da urbanização e das obras públicas, serviços de transporte (comboios, autocarros…) e apoio aos doentes, idosos e crianças. É longa a lista.

O Estado, furtivamente, caso a caso, tem vindo a despovoar largas zonas do país. Muitas vezes com a colaboração, o silêncio ou a impotência das autarquias. É este desmantelamento que é condenável. O Estado não faz avaliação de conjunto. Os partidos também não. Estes apenas se preocupam, de vez em quando, com a regionalização, na convicção, de uns, de que essa é receita de salvação, e de outros, que essa é uma solução diabólica.

Ora, cada município merece análise de conjunto. Uma região ou um conjunto de municípios vizinhos podem debruçar-se sobre o mesmo problema e, caso a caso, encontrar soluções adequadas, um concelho fica com o hospital, outro com as obras públicas, tudo depende das áreas e das distâncias.

Uma coisa é certa: há serviços e instituições que existem para servir o povo, para manter vivas localidades, para ajudar a atrair emprego, para reforçar a coesão social e para manter a vida, não para dar lucro e ser rentável. Fechar comboios, encerrar os correios, fechar maternidades, terminar escolas, liquidar serviços aos idosos, descontinuar serviços da administração e desmantelar regimentos, cada uma destas decisões pode ter alguma justificação, desde que ponderada e debatida. Por junto, é a matança institucional sem justificação decente.

São as duas políticas contraditórias. O que faz a mão direita, a esquerda não sabe! Por um lado, o Estado não cessa de inventar ajudas e apoios: impostos, taxas, favores, subsídios, investimentos, auto-estradas, subsídios à interioridade e à insularidade, apoio aos preços da energia, da água e dos telefones, é um nunca mais acabar de benesses.

Por outro lado, liquidam-se empregos, empresas, tribunais, serviços administrativos, serviços públicos, escolas, maternidades, freguesias, correios, agências bancárias, regimentos, esquadras de polícia e da guarda, serviços e guardas florestais, guarda-rios e serviços veterinários.

Os apoios e as ajudas são excelentes, mas pouco conseguem, como se tem visto. Até porque são contrariados pela destruição sistemática do tecido e da coesão institucional. É verdade que onde não há crianças não há escolas. Onde não há mães não há maternidades. Onde não há doentes não há hospital. Mas será mesmo assim? Não será mais verdade que, onde não há instituições, onde não há correios, onde não há empresas, onde não há serviços, onde não há escolas, não há pessoas?

Percebe-se que os quartéis de fronteira tinham como principal missão a de olhar para os adversários de terra, para Espanha! E consta que a Espanha já não é nossa eterna inimiga, antes pelo contrário. Mesmo assim, os quartéis estavam lá, como podiam estar em qualquer outro sítio e eram factores de coesão, de animação, de casamento, de natalidade e de comércio.

Um regimento não é um problema. Caso a caso, uma escola, um banco ou uma estação de correios, percebe-se sempre. Adicionados casos uns aos outros, não se percebe. Ou antes: não há uma visão de conjunto, não há plano, faltam autarquias não obedientes ao poder central, ao partido e ao governo.

Uma coisa é certa: não faz qualquer espécie de sentido os poderes públicos provocarem e depois subsidiarem a interioridade! E pior do que tudo é a concepção de que as instituições têm de ser rentáveis. Uma escola? Um correio? Um centro de saúde? Um lar de idosos? Deve ser isso a que chamam sustentabilidade.

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