A casa grande

Rodar as chaves do portão de ferro é quase penoso. Já não há vénia. Agora é lento. Pelo pó e pela ferrugem. Abre-se a custo e a medo. O que estará no pátio?

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João Miranda

Não é fácil lá passar. Quando o sol é forte os azulejos cor de vermelho desmaiado ainda brilham. A casa até fica imponente dentro da decadência. Agora, quando o cinzento domina o céu, aqueles azulejos só me dizem tristeza. Uma tristeza angustiante. Sufocante. Evito lá passar. Já lá vão muitos anos em que não queria de lá sair. Com sol, chuva, frio ou calor, era lá que eu gostava de estar. Sentia-me bem. Feliz. Não existe melhor jeito de estar na vida que não seja amantizado com a felicidade. Que bom. Difícil, mas bom.

Sempre o mesmo ritual. Buzina aguda, dois minutos de espera, que por vezes pareciam anos. Dependia da ansiedade. E o enorme portão de ferro trabalhado dividia-se em dois. Como uma vénia. E o automóvel entrava para o grande pátio. Vinha o cão a dar ao rabo. Felicidade. Vinha o cheiro das uvas americanas. Vinha a liberdade do abraço. Aquela casa era grande. Na volumetria e no afecto. O tempo voava. Existia sempre ocupação. Coisas de adultos. Teimosos. Resilientes. E eu, que lhes dava pela cintura, estava sempre presente. Na rega do milho ou na sementeira da batata. Na apanha das pêras ou no lagar a dar à roda no esmagador. No machado a rachar lenha ou a pregar pregos no novo poleiro do galinheiro. A amassar o pão ou a tirar o galo do forno do fogão de lenha. A ver na Radiola o Tarzan ou a sonhar que um dia subiria a gigante palmeira. A ver o sábio mecânico a desmanchar o motor do carro ou a construir cidades imaginadas em pequenas peças de lego. Ouvir as gargalhadas dos adultos ou acordar em Dezembro para descobrir os presentes no sapatinho da chaminé. Era tão grande aquela casa. Tinha vida. Uma vida temperada no trabalho.

O quintal com as laranjeiras, as macieiras, as pereiras, o diospireiro, o limoeiro, as parreiras. A eira e o tanque de rega. O pátio com a adega, a casa do azeite, a casa das batatas, a oficina, o galinheiro. A casota do cão feita por mim. A cozinha de mesa longa. A sala, os quartos frescos de verão e frios de inverno. Os livros de Jorge Amado, Fernando Namora e Ferreira de Castro. A família e os amigos. Todos os dias aquele chão era pisado ao sabor da amizade. Todos eram bem-vindos. Todos se sentiam ali bem. Na casa do João e da Rosa. Estranhas eram as visitas pela noite escura. Falavam baixo. Trocavam papéis. Bebiam café ou vinho. Depois iam embora. Cautelosos. Numa primavera as visitas nocturnas acabaram. E nunca mais se falou baixinho. A caixa do milho também deixou de ter papéis enterrados no alimento das galinhas.

Tenho saudades. E elas aumentam à mesma velocidade que vou envelhecendo. Porque a casa grande está todos os dias em pensamento. Gosto disso. É um regresso reconfortante, numa espécie de máquina do tempo. Ou pelo cheiro. Pelo sabor. Pelas letras. Pelas imagens. Tudo me liga à casa grande. Porque ainda tenho futuro para desbravar. E promissor é o futuro quando se afirma pelo passado. Não encontrarei bolos de bacalhau iguais. Nem beberei um copo de mosto na adega. Mas posso continuar a martelar como ele me ensinou. A ser resistente como ela sempre quis que eu fosse. Posso e devo.

Rodar as chaves do portão de ferro é quase penoso. Já não há vénia. Agora é lento. Pelo pó e pela ferrugem. Abre-se a custo e a medo. O que estará no pátio? Um vaso caído. Uma telha partida. Um rato esticado. Os passos são lentos, sempre à espera de serem surpreendidos. Os móveis que restaram das partilhas estão cheios de cotão. As paredes escuras. O chão sujo. Silêncio. Um silêncio louco. Ninguém chama o meu nome. Já não existem vozes nem palavras. Muito menos sorrisos. Na terra onde desenhava os meus pés, as ervas tomaram-na como sua. As laranjeiras estão a secar. A pereira espera pelo vento forte para tombar. Só o diospireiro brota vida de esperança.

Fico ali a olhar com vontade de os ver. E consigo falar com eles. E a Venezuela? E o Trump? E o bairro da Jamaica? E o racismo? E a pobreza? E a guerra? E a fome? Ainda oiço, o que tantas vezes ouvi, “temos que continuar a lutar por um mundo melhor. Já não é para nós, mas será para os nossos netos.”

Na casa grande, só o diospireiro brota vida de esperança. Só vos posso prometer, João e Rosa, que os vossos bisnetos gostarão de dióspiros.

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