Só há problemas na escola?

As culpas são atribuídas à escola. Turmas com alunos problemáticos e repetentes, e professoras que são substituídas, não raro mais de uma vez no mesmo ano. Em casa recorda-se que ele era de facto difícil, mas só quando era mais pequeno.

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Enric Vives-Rubio

Mas não em casa? E são sobretudo de comportamento, “porque até aprende bem, quando quer. Nem corre mal com os colegas, é líder, tem amigos”. Corre mal sobretudo com professores e auxiliares.

É um dos cenários mais difíceis, quando não há problemas em casa, mas só na escola e nas outras actividades. Será mesmo assim ou haverá aqui uma história mal contada?

As culpas são atribuídas à escola. Turmas com alunos problemáticos e repetentes, e professoras que são substituídas, não raro mais de uma vez no mesmo ano. Em casa recorda-se que ele era de facto difícil, mas só quando era mais pequeno, ao contrário da irmã mais velha, e fazia muitas birras, explosões de humor que apareciam do nada, com necessidade de negociar tudo, as horas de ir para a cama, a televisão ligada, etc.; “todas as noites uma guerra, tentámos tudo”; a educadora queixara-se repetidamente de que ele não conseguia ficar quieto, agredia as outras crianças e não lhe obedecia. Sugerira observação por psicóloga, que gostou muito dele (“é um miúdo muito afectivo”) e disse que não tinha hiperactividade nenhuma. Mas a pressão da escola foi maior, exigiu consulta médica e avaliação. Surgiu o diagnóstico de “perturbação de hiperactividade com défice de atenção”, moderada, mas sobretudo “perturbação do controlo dos impulsos ou comportamento de oposição” (DSM5) e foi indicado tratamento com metilfenidato e risperidona, que os pais não quiseram dar depois de ler a bula. Mas estão preocupados agora com uma história de doença bipolar num primo.

Em casa as coisas acabaram por melhorar. Pelo menos os pais dizem que corre tudo bem. As birras passaram a ser raras. “Ele tem uma personalidade muito forte, desde pequeno, e precisa de que as coisas sejam explicadas, temos uma cultura em casa de falarmos abertamente entre todos. Tem as suas rotinas, come de tudo embora seja selectivo e, se agora não faz desporto nenhum, já esteve em muitos mas não gostou ou incompatibilizou-se com o treinador. Adormece mais tarde do que gostaríamos, é verdade, e na manhã seguinte nem tudo é fácil antes de sair de casa. E ele precisa de descansar da escola e por isso deixamo-lo jogar no computador quando chega.”

É em casa que está muitas vezes o problema. E não é pequeno, porque obrigou a uma configuração particular da dinâmica familiar, exigindo negociação para levar a bem tudo o que não lhe apeteça fazer e muita compreensão por parte de pais e avós porque, “coitado, tem um problema de comportamento de oposição e controlo dos impulsos, mas está melhor”. Que por isso lhe toleram agressões verbais e por vezes até físicas, agora já raras. Percebe-se que só são raras porque a “agenda” desde que chegou da escola foi estabelecida por ele; os clínicos que suportaram este diagnóstico que a escola exige confirmaram uma ‘checklist’ de queixas no DSM e propuseram apoio psicológico que ele não gostava e que os pais não podiam assegurar por falta de tempo.

Ninguém explicou porque é que ele parece insatisfeito com tudo, excepto quando está na Net, que é quase sempre; nunca se percebe porque é que as birras surgem — o que poderia dizer muito sobre o que lá se passa — mas apenas quantas vezes, quanto tempo e com que periodicidade no último semestre; com a atenção focada no próprio miúdo e não no peculiar contexto em que foi crescendo, com pais reféns do seu comportamento e reactividade, como não perceber que o problema não está nele e que não faz, de facto, sentido medicá-lo?

Ao contrário do que se pensa, nem ele se sente bem com tanto poder, que naturalmente conquistou e “treina” em casa, em que encontra uma tolerância que não existe na escola. A sua insatisfação permanente é um indicador poderoso do risco em que se encontra de não aprender a lutar por objectivos seus e de tirar prazer de os alcançar. Um problema hoje em dia. Ao expulsar a antiga pedopsiquiatria, que de facto cuidava pouco de objectivar as coisas, mas sabia ensinar a ouvir e entender as causas delas, tudo ficou entregue à nova ignorância das listas de critérios diagnósticos. Que não querem saber “porquê” mas apenas “quantas vezes”.

É quando só há problemas na escola que é mais importante perceber o que acontece e aconteceu em casa. E porventura mudar aí as coisas, reconstruir a distância geracional e o papel dos pais. Os miúdos precisam mesmo disso. Toda a gente precisa.

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