Mais de metade dos atentados na Europa desde 2007 foram de auto-recrutamento jihadista

Francisco Jorge Gonçalves foi assessor jurídico para as missões portuguesas no Kosovo e Bósnia. É quadro da Autoridade Nacional de Protecção Civil e investigador da Universidade Católica. Doutorou-se com uma tese sobre ameaças não violentas do islamismo radical.

O denominado Estado Islâmico perdeu o território mas sobrevive na Internet, inovou ao indicar um califa e a estruturar-se no imaginário de um califado. Desradicalizar os que abraçaram a causa extremista que os levou à Síria e agora querem regressar à origem europeia passa por não estigmatizar o Islão, não culpar a religião do seu aproveitamento político. O desafio é viver em liberdade e convivência, em tolerância e progresso, sem guetos ou justificações. Não esquecendo que o jihadismo não quer o diálogo e tem recursos de uma perigosa auto-reprodução. Desde 2007, mais de 50% dos atentados na Europa tiveram a marca de grupos autónomos que se auto-recriaram sem matriz organizacional.

Portugal é considerado placa giratória dos jihadistas. Esta situação pode mudar?
Os últimos atentados terroristas em Portugal foram em 1983, o assassinato de Issam Sartawi [dirigente da OLP abatido a 10 de Abril em Albufeira por um comando de Abu Nidal], e o assalto à embaixada da Turquia [realizado por uma organização arménia em 27 de Julho que provocou sete mortos]. Em 2004, na inauguração do campeonato da Europa de futebol, supostamente haveria uma tentativa de assassinato ao dr. Durão Barroso por três membros da rede Hofstad que viria a assassinar Theodoor Van Gogh [cineasta morto em 2 de Novembro, em Amesterdão], e a cerimónia de inauguração começou meia hora mais tarde. Já em 2008, foi desmantelada em Barcelona uma célula que pretendia implementar actos terroristas e atentar em Portugal. Um dos seus membros veio para a Europa via Paquistão e entrou por Lisboa. Portugal é uma placa giratória, mas será um alvo de oportunidade se estiver presente uma alta individualidade ou a decorrer um grande evento. O risco é reduzido, o que não quer dizer que por circunstâncias endógenas não possa vir a ocorrer.

Houve dezena e meia de combatentes portugueses ou luso-descendentes na Síria. Há medidas para acompanhar os que regressem?
A Grã-Bretanha foi o primeiro país com um programa de combate à radicalização, o Contest, em 2006. Três anos depois, foi feita uma alteração e, aquando da eleição de David Cameron como primeiro-ministro, houve alterações. Foi ampliado o programa Channel, de frequência obrigatória, a partir de 2014, para todos os que regressassem da Síria. Apesar dos programas de desradicalização não serem coactivos, face ao perigo de indivíduos com experiência operacional, eles eram obrigados a frequentarem-nos. Portugal, depois da resolução 7-A de 2015 do Conselho de Ministros sobre actividade terrorista, dispõe de mecanismos que levam as pessoas que regressem da Síria a um programa de desradicalização, que analisa a extensão do risco, se estas aceitam os princípios do Estado de direito e, acima de tudo, se estão em condições de serem integradas plenamente na sociedade portuguesa, pois absorveram uma imputação radical do Islão.

Que meios implica a desradicalização?
É necessário distinguir dois conceitos, a contra-radicalização – evitar a radicalização – e a desradicalização, combater os já radicalizados. Ao contrário do contra-terrorismo que incide nos jihadistas, a contra-radicalização incide nas comunidades de muçulmanos para evitar que sejam sensibilizados pelas ideias extremistas. A sua aplicação incide nas universidades, mesquitas, estabelecimentos prisionais e Internet.

Isso é feito através de uma abordagem interdisciplinar?
Há uma linha divisória no combate à radicalização nos países do Médio Oriente e nos programas na Europa, dos quais estudei com maior profundidade os da Grã-Bretanha, Holanda e Dinamarca. No Médio Oriente entendem que os indivíduos absorveram uma versão radical do Islão e o antídoto é a versão de cada país. Especialmente no programa da Arábia Saudita, esta aproximação teológica levanta problemas, porque obviamente não procura compaginar a sua versão do Islão com princípios do Estado de direito, quer-se apenas legitimá-la. Diferentemente, nos programas da Grã-Bretanha, Holanda e Dinamarca há uma ênfase muito grande nos princípios de Estado de direito, mas, e essa é a grande pecha, não existe abordagem em termos teológicos. Há muitos ex-jihadistas que publicaram as suas memórias e que fazem o seguinte reparo: se um indivíduo entende que a jihad é o sexto pilar do Islão, que a jihad é o combate aos infiéis, que a jihad não tem limites, se estas questões não forem contrariadas dizendo que a jihad é o esforço do crente para se tornar num melhor crente, que a jihad pode ter uma componente guerreira mas obedecendo a determinados limites, obviamente a desradicalização não funciona.

O processo de desradicalização deve ser uma combinação?
Exactamente. Em muitos programas de desradicalização do Médio Oriente eles até concordavam com alguns argumentos dos jihadistas, mas ressaltavam que a jihad só pode ser declarada com a existência de um califa. O que é que aconteceu com o Estado Islâmico? Criaram um califado. Ao não terem combatido essa ideia, sucedeu que muitos indivíduos se deslocaram para o teatro de operações, portanto foi um erro estratégico que também incluiu a Europa por não combater estas distorções da teologia. É certo que países com separação do Estado da religião têm este dilema, mas sempre podem mostrar não estar vinculados a uma determinada interpretação e mostrar as diferentes sensibilidades. Se não se conseguir rebater esta ideia, subjacente ao terrorismo jihadista que distorce os conceitos da religião islâmica, não se resolve o problema.

É mais fácil começar o reencaminhamento islâmico do que a difusão dos valores democráticos?
Temos de fazer uma análise bifocal. O Islão não pode ser encarado como um problema, mas como a solução. Os católicos adaptaram-se à democracia, os mormons adaptaram-se à democracia. Este percurso que as diferentes religiões já fizeram tem de ser seguido pela muçulmana, de que a sua religião é compaginável com a democracia. Há uma ideia-chave: um texto religioso, por si só, não é mais exclusivo ou inclusivo, são os crentes que o tornam exclusivo ou inclusivo. A Bíblia no passado foi justificação para a guerra e o Antigo Testamento está cheio de violência.

Quais são as valências das equipas multidisciplinares necessárias à desradicalização?
Ingleses, holandeses e dinamarqueses fazem planos personalizados. Não há um programa-tipo, varia consoante o indivíduo, não é padronizado, é sempre à medida. Na Holanda, as forças e serviços de segurança validam se um indivíduo é ou não radicalizado, mas as autoridades depararam-se com o dilema de motivar os funcionários para evitar a situação incómoda de estar à procura de um terrorista. Tal como se lida com pessoas com problemas de drogas, álcool, há a consciência de que estes indivíduos absorveram uma interpretação radical do Islão, e estão vulneráveis e merecem ser tratados. Temos de acabar com o bicho-papão de que a desradicalização é inovadora. Após o fim da II Guerra Mundial, a Alemanha implementou programas de desradicalização, porque tinha sido absorvida uma ideologia radical. A Europa tem de tomar medidas, sobretudo com os fenómenos migratórios em que há indivíduos que absorveram uma visão radical do Islão. Se a absorveram e não aceitam no local de trabalho receber ordens de uma mulher, mais tarde ou mais cedo vão para acções criminosas ou actos terroristas. É por isso que é necessário sublinhar que o Islão é compaginável com a democracia, não tornar a religião islâmica como algo que não seja útil. Repito: o Islão tem de ser encarado como uma solução e não como um problema.

Os líderes religiosos não radicais têm algum papel?
O grande problema com que se deparou o mundo ocidental foi como separar os moderados dos falsos moderados que querem legitimar a sua visão do Islão como única e credível. Após o 11 de Setembro de 2001 [atentados de Nova Iorque], muitos destes radicais reinventaram-se como respeitáveis defensores do Estado de direito, mas todavia apoiam e defendem ideias radicais. Os líderes religiosos não radicais têm um papel fundamental e as autoridades devem saber separar o trigo do joio. Em muitos planos de desradicalização, que só fazem ênfase em princípios do Estado de direito, não se faz a ponte com a religião.

Só assim, a desradicalização evita a estigmatizar o islamismo?
O Islão. A primeira coisa que os islamitas querem passar é que não há diferença entre a sua ideologia política, o islamismo, e o Islão, quando existe uma separação perfeitamente distinta. Uma coisa é a fé do crente, outra a distorção de uma religião para efeitos políticos.

O “lobo solitário” é enquadrável ou é incontrolável?
O que se tem de saber é como é que o processo de radicalização entronca nas novas formas de terrorismo jihadista. Muitas vezes, um indivíduo singular, o “lobo solitário”, ou um grupo, quer aderir a uma organização terrorista mas não sabe como o fazer. Daqui, surgem duas novas realidades: a conscrição ou o auto-recrutamento. Na conscrição, o indivíduo oferece os seus préstimos para combater na Síria ou no Afeganistão, por exemplo usando a Internet. Existem duas partes, o recrutador e o recrutado, e o recrutador vai avaliar se aquele indivíduo entra na organização e na vertente operacional. Agora, existe um novo sistema, o auto-recrutamento, em que um indivíduo, per si ou em grupo, abraça a ideologia e cria uma organização terrorista sem ligação com nenhuma outra. Desde 2007, quando começaram a ser elaborados os relatórios da Europol, mais de metade dos atentados terroristas na Europa são provenientes do auto-recrutamento, seja pelo "lobo solitário” seja por organizações terroristas sem ligação a qualquer outra. Contudo, está a surgir um novo fenómeno, que aumentou com o Estado Islâmico, um hibrido entre conscrição e auto-recrutamento: o indivíduo adere a uma organização, é enviado a um teatro de operações para ganhar a vertente operacional e, depois, quando regressa, desliga-se da organização que o formou e cria uma célula terrorista autónoma. Este é mais perigoso, porque já ganhou a valência operacional.

No "lobo solitário”, aprender a fazer bombas através da Internet é um desafio, mas o risco é diminuto. Aliás tivemos casos, como o do atentado no voo Amesterdão-Detroit em 2009, que falharam. No entanto, em relação aos atentados falhados temos que ter sempre em mente o atentado a Margaret Thatcher, em Brighton, em 1984: puseram uma bomba no andar inferior do hotel em que estava hospedada, e o IRA enviou um bilhete simples mas eficaz – “hoje tiveste sorte e nós tivemos azar, mas lembra-te que tens de ter sorte todas as vezes e nós apenas uma”. Portanto, no "lobo solitário” o risco é muito reduzido mas basta ele ter sorte uma vez.

Na radicalização há um catalisador, o pregador carismático. Qual é a situação em Portugal?
Portugal tem uma comunidade islâmica bastante moderada, um bem que tem de ser devidamente valorizado. Temos em Portugal debate inter-religioso entre as três grandes religiões monoteístas, que não é possível noutros países. Não assistimos a manifestações com os cartoons de Maomé ou com os versículos satânicos. Mas não quer dizer que, por via Internet, isto não seja contornado. O Estado Islâmico foi o precursor das redes sociais, aprendeu com o falhanço do radicalismo nos costumes dos talibãs no Afeganistão. Se, territorialmente, foi derrotado, na Internet continua vivo. E marcou um precedente: proclamar um califa, o que dá legitimidade.

Em Portugal são seguidas as medidas da União Europeia para prevenir a radicalização nas prisões?
Está a ser implementado porque existem fundos comunitários, mas é um programa que demora o seu tempo e que implica dar formação ao corpo da guarda prisional. Afinal, haver na prisão um muçulmano que tem uma barba longa não significa que seja um extremista.

Ouça a entrevista no programa A Europa que conta:

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