Vinho, um bom anestésico para as desgraças do país

O que é que esta crónica tem a ver com vinho? Nada e tudo. Tudo porque para podermos enfrentar e conviver com tanta miséria precisamos de uma boa dose de anestesia .

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Martin Henrik

Todo o governo que se preze (o actual, os anteriores e certamente os futuros) elege a dinamização do interior como um dos grandes desígnios nacionais. Não há campanha eleitoral que esqueça o assunto e não há mandato que não comece com promessas de grandes investimentos nas regiões desfavorecidas. Incautos, até mesmo os melhores e mais credíveis jornalistas acreditam que “agora é que vai ser”.

Os anos vão passando e o país continua a adornar para o litoral, enquanto a “província” se vai esvaziando e envelhecendo. Tenho um primo transmontano que reage bem a isto, questionando assim a corte: “Estorvamos? Vejam lá, se estivermos a mais pedimos a outro país que fique connosco!".

Recentemente, António Costa e o seu ministro mais descaradamente propagandístico, Pedro Marques, apresentaram na Assembleia da República o Programa Nacional de Investimentos para a próxima década. No total, são cerca de 20 mil milhões de euros que o Estado se propõe gastar em infraestruturas até 2030. Mas já foram ver no mapa os lugares onde vai ser investido todo esse dinheiro? Tirando um ou outro projecto, a esmagadora maioria dos investimentos concentra-se ao longo do litoral. Uma década que deveria ser de convergência vai acentuar ainda mais a divergência territorial do país. Como é que este programa não mereceu uma onda de indignação no país? Como é possível que os deputados eleitos nos círculos do interior - pelo menos estes - continuem calados?

A teoria de que os investimentos devem privilegiar os lugares onde há mais gente e mais negócios já não convence ninguém. Não somos nós que andamos sempre a pedir mais convergência e coesão à União Europeia? Quanto mais investirmos no litoral, mais gente vamos atrair para lá. Ou seja, esvaziamos ainda mais o interior e aumentamos os problemas das grandes cidades, obrigando, depois, a mais investimentos para os resolver. Por outro lado, com menos gente no interior, torna-se fácil justificar o encerramento de serviços públicos, e sem serviços públicos só mesmo os mais teimosos quererão ficar no interior. É um ciclo vicioso que nunca mais acabará.

Confesso que, genericamente, até simpatizo com a geringonça. Quando o actual Governo criou a Unidade de Missão para a Valorização do Interior ainda acreditei que pudesse mudar alguma coisa. Mas já se percebeu que o legado vai ser igualmente um desastre. Reduzir as portagens numa ou noutra estrada não passa de um placebo.

Para se perceber melhor a imparável divergência territorial do país e a forma como o dinheiro público é aplicado, não há nada como olhar para o mapa dos pagamentos feitos no ano passado pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas. São números que dizem respeito a subsídios e apoios ao investimento. Sabem qual foi o segundo distrito que mais dinheiro recebeu? Lisboa, pois claro. Foram 136 milhões de euros. Só Beja recebeu um pouco mais: 151,6 milhões. Em terceiro lugar surge Évora, com 118,5 milhões de euros. Em contrapartida, com muitos mais agricultores, Viseu recebeu 57,8 milhões de euros, Vila Real 73 milhões, Guarda 60 milhões, Castelo Branco 50 milhões e Bragança 93 milhões de euros.

O grosso do dinheiro recebido por Lisboa diz respeito ao chamado Pedido Único, que engloba vários subsídios de apoio à exploração e também ao pagamento de direitos adquiridos. São apoios que beneficiam, sobretudo, as explorações maiores, com impacto visível nas zonas de latifúndio alentejano - daí que os milhões recebidos por Évora e Beja, dois distritos do interior, devam ser relativizados, uma vez que o grosso do dinheiro só chega ao bolso de umas quantas famílias e empresas, muitas com sede e casa em Lisboa. 

É o país que temos. O mesmo país que paga colossais imparidades da banca sem resmungar muito. O caso da Caixa Geral de Depósitos é de criar úlceras no estômago, de tanta revolta, porque muitos dos que não pagaram os empréstimos, obrigando os restantes portugueses a subvencioná-los, continuam por aí a exibir empresas e uma vida de luxo. A um cidadão que deixe de pagar um empréstimo de 30 ou 40 mil euros é-lhe logo penhorada a casa e todos os bens que tiver; a Berardos, Finos e outros que tais, aceitam-se descontos exorbitantes nas dívidas.

O que é que esta crónica tem a ver com vinho? Nada e tudo. Tudo porque para podermos enfrentar e conviver com tanta miséria precisamos de uma boa dose de anestesia - e o vinho é um dos melhores anestésicos que existem. E depois porque alguns dos empresários que nos obrigaram a colocar dinheiro na CGD, no ex-BES, no Banif e no BPN são conhecidos produtores de vinho, a quem continuamos a prestar vassalagem e a avaliar os seus “extraordinários” vinhos.

Como é possível que Joe Berardo tenha prejudicado tanto o banco público e continue a ser dono da Aliança e a desfrutar do Palácio da Bacalhôa? Por que razão a CGD não toma possa desses activos? E podia dizer o mesmo de Joaquim Coimbra, da Dão Sul, que deixou uma dívida enorme no BPN, ou de Manuel Fino, outro da lista negra da CGD e que continua a brincar aos vinhos no Alentejo. Não estará na hora de quem escreve sobre vinhos ter um assomo de dignidade e começar a olhar para esses produtores com o mesmo espírito crítico de quem olha para um qualquer criminoso, denunciando-os ou ignorando-os? Se continuarmos a ir às provas da Bacalhôa e a escrever sobre os seus vinhos, não estaremos a ser cúmplices de Joe Berardo? Com o dinheiro dos outros, quem é que não faz bons vinhos?

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