Um livro com as vozes que o mar nos traz

O Algarve volta a ser o território que Maria Manuel Valagão escolhe para, com Nídia Braz e fotografias de Vasco Célio, fazer um retrato da complexa e profunda relação dos homens com o mar e o peixe.

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Salinas Vasco Célio

Esta é uma paisagem, de mar, de ria, de lagoas, de salinas, da qual se erguem vozes. Quando nos pomos à escuta – e neste caso fazemo-lo com a ajuda de Maria Manuel Valagão, Nídia Braz e do fotógrafo Vasco Célio, autores de Vidas e Vozes do Mar e do Peixe – conseguimos ouvir as vozes dos homens e mulheres que falam dessa existência em comunhão com um mar que lhes dá o alimento mas que lhes pode tirar a vida.

Depois do livro Algarve Mediterrânico, Maria Manuel Valagão volta a concentrar-se no mesmo território, o Algarve, para esta obra na qual explora, a partir de vários pontos de vista, as relações dos homens com o mar e o peixe. O grande rigor do seu trabalho de investigação, aqui com a cumplicidade de Nídia Braz, professora da Escola Superior de Saúde da Universidade do Algarve, junta-se a uma capacidade de ouvir – e de nos fazer ouvir – as tais vozes que contam histórias de hoje mas sobretudo histórias de um passado que, se não for registado, corre o risco de ser esquecido.

É assim que entramos, por exemplo, nos barcos dos pescadores, para sentirmos o cheiro das caldeiradas. “Caldeirávamos sempre o peixe a bordo do barco”, conta, num dos muitos relatos reproduzidos no livro, o Ti Manelinho Guerra, “recordando os seus inícios de vida de pescador na ria Formosa, em frente a Olhão ou na costa”. “Era peixe cozido, era peixe guisado. […] Era o que apanhávamos, ou um chocozito ou algum linguado. Mas não havia tomate nem nada disso. Depois com o caldo é que se fazia o xerém, que é papas de milho, porque não havia mais nada, nem arroz nem massa, a fome estava em monte. Íamos para a terra no outro dia. Dormíamos no mar ou ao pé do farol, pois não havia os barcos que há hoje.”

Foto
Vasco Célio

Se essa vida era difícil, mais difícil, quase impensável, era a dos que partiam para longe, para a pesca do bacalhau – e houve muitos pescadores algarvios que o fizeram entre os séculos XIX e XX, sobretudo homens da Fuzeta. Maria Manuel Valagão mergulhou também nesse “mundo de lembranças”: “Ausências, hora da saudade, ir à Nossa Senhora do Livramento, vila de amêijoas, roupa a olear nas açoteias, cheiro a óleo, gorpelhas do bacalhau, comboio-correio, partida, novenas na igreja, rezar o terço, pedir uma boa viagem e agradecer à Nossa Senhora do Carmo, esperar regresso, caiação da casa, afofar colchões…”.

Mas nem só de “pescas lembradas” se faz este livro. As “vozes” trazem-nos também o saber ligado à conservação do peixe, desde as técnicas mais tradicionais de seca ao sol ou com sal, até aos métodos mais sofisticados da indústria conserveira que tanta importância teve no Algarve. E partilham connosco, leitores, os segredos de alguns dos pratos mais populares, das caldeiradas dos pescadores (cada uma com a sua particularidade), às sopas de peixe, massadas, papas de milho, guisados, passando pela canja de conquilhas, o grão guisado com bacalhau ou os carapaus alimados.

Num dos capítulos aprendemos sobre as artes da pesca, ouvindo, entre muitos outros, Manuel Maria Preto explicar que “a pesca tem o seu preceito, aquilo vai da isca e de saber iscar”. Se se enterra a isca toda no anzol “ele não pesca, porque não bandeia”. Além disso, é preciso saber preparar um isco, como o do choco congelado com anis, que é assim porque “o peixe gosta de doce”.

Há, como não podia deixar de ser, um capítulo dedicado apenas à pesca do atum e à importância que este animal tem desde sempre para o Algarve. Nele se fala das campanhas e do que era a vida numa armação de atum. E, sempre guiados por Maria Manuel e pelas muitas pessoas com as quais ela se cruza (são 36 testemunhos recolhidos sobretudo junto a algarvios), vamos pelas lotas e pelos mercados para perceber como se comercializa hoje o peixe. “Aí, na fronteira entre o mar e a terra, os mercados fervilham de pessoas, de peixes e o mar faz-se presente” e, escreve, é através da observação dos mercados que “percebemos melhor que o mar não tem fronteiras”, porque os peixes que ali se vendem “chegam de perto ou de águas distantes”.

Por fim – correspondendo a uma preocupação que a autora tem em todos os seus trabalhos, a da ligação à actualidade e o olhar para o futuro –, quase a encerrar o livro (que inclui ainda um glossário e uma muito útil listagem dos peixes e mariscos, com um pequeno texto sobre cada um) encontramos as “vozes da modernidade”, dois chefs, Bertílio Gomes (com quem Valagão já tinha colaborado na obra anterior) e o austríaco Dieter Koschina, do hotel boutique Vila Joya, no Algarve. E também Pedro Bastos, da empresa de comercialização de peixe Nutrifresco, que é uma das pessoas que mais sabe sobre o peixe da região e que mais tem feito para que o conheçamos melhor e para que o consumamos de forma sustentável.

Essa é, aliás, uma preocupação dos autores que atravessa todo o livro. No futuro ainda teremos estes peixes? E ainda teremos este mar? Alerta Maria Manuel Valagão sobre o mar que se “faz presente” nos mercados: “Pressentimo-lo imenso, ao longe e ao perto. Imaginamos um mar aberto e luminoso, e este fascínio, esta tanta claridade, este tanto sol, são enevoados pelo sentimento de o sabermos ameaçado.”.

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