Jessica Pratt: “As pessoas dizem que me ficam a conhecer depois de me ouvirem”

As canções são arrastadas e misteriosas, navegando nelas a sua voz e guitarra de forma quase imperceptível. Dito assim pode parecer o álbum mais aborrecido do mundo. Mas a magia acontece. Em Quiet Signs a americana Jessica Pratt é magnífica.

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Tudo começou numa sala escura de cinema, “muito diferente de ver em casa”, diz-nos a cantora-compositora americana Jessica Pratt. Na tela passava Noite de Estreia, filme de 1977 de John Cassavetes, com Gena Rowlands, "filme sobre o envelhecimento, sobre a forma como a ficção se pode confundir com a vida, obra visceral e dramática”, acrescenta. “Já tinha visto o filme, mas vê-lo ali, naquela sala, naquele momento do processo criativo do novo disco, quando ainda estava insegura sobre o caminho a seguir, fez-me pensar. Durante semanas reflecti muito na forma como projectamos as nossas experiências em personagens ficcionais, seja num filme, ou em canções, como no meu caso. Andava perdida em relação ao novo disco e esse visionamento acabou por servir, de alguma maneira, de ponto de partida, embora não o soubesse na altura.”

O primeiro tema do novo álbum, Quiet Signs, a editar a 8 de Fevereiro, chama-se precisamente Opening night, peça instrumental para piano que introduz o tom introspectivo de uma obra magnífica. Disco de canções tão melancólicas quanto luminosas – “é mais Inverno do que Verão, mas é também Outono e Primavera”, dirá às tantas – marcadas pelo dedilhar folk minimal e pela voz distintiva, projectando palavras de forma quase imperceptível, por vezes envoltas num edifício sonoro atmosférico onde cabem ocasionalmente sintetizadores ou flautas. As canções são curtas, por vezes parecendo inacabadas, e no entanto respiram eternidade, guardando qualquer coisa de misterioso, palavras sussurradas que nunca são explicitadas e no entanto partilham um sem número de cambiantes emocionais. A falar Jessica é um pouco assim também. Rumina. É atenta. Mas fica sempre a ideia que falta algo.

E no entanto a magia da comunicação acontece. É como as letras. Não oferecem narrativas. Parecem reminiscências, alusões, notas de um sonho inacabado a que não se consegue atribuir um sentido. “Quando começo um disco existe uma ideia abstracta, um certo tipo de emoção que é preponderante e que me faz operar, mas nunca existe premeditação sobre o que vai acontecer. Mas para este álbum pensei imenso. É o meu terceiro disco. Sei que existem expectativas à minha volta. Imagens pré-concebidas que as pessoas têm. Não quis ir contra isso. Mas também não me interessa representar um papel. Tenho a certeza que este disco é o meu melhor até agora, o mais desnudado também. As pessoas dizem que me ficam a conhecer depois de me ouvirem cantar. Parece-me que no caso deste disco isso fará até mais sentido.”

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Depois de ver Noite de Estreia, de John Cassavetes, ficou a reflectir sobre “a forma como a ficção se pode confundir com a vida” e esse visionamento acabou por servir de ponto de partida para o seu disco

Para trás ficam dois álbuns. O homónimo de estreia, em 2012, e On Your Own Love Again de 2015. “O último álbum foi gravado em casa, por mim, com instrumentação adicional em duas canções. Este foi criado em estúdio, logo correspondeu a um processo diferente, embora tenha sido também solitário. Mesmo quando estava com o engenheiro de som pedia-lhe para abandonar a sala quando queria gravar”, ri-se. “Tentei manter as coisas numa dimensão privada, embora tenha sido um álbum mais colaborativo o que foi bom.” Nele participam o companheiro, o multi-instrumentista Matt McDermott, e o produtor Al Carlson. Mas o centro das canções é o mesmo de sempre – a sua guitarra acústica, o som caloroso e a sua voz espectral e enigmática, por vezes no limite do decifrável. “Devolvem-me muito isso”, ri-se, “mas não vou mudar. Mesmo se não se percebe todas as palavras, a tonalidade emocional está lá intacta. Não há regras. Há muitas formas de utilizar a linguagem e as entoações das palavras.”

Tem razão. Mesmo se as palavras não forem inteligíveis, o todo é-o. O que é fascinante na sua música é que mesmo quando parece simples, tem a capacidade de nos despistar. Até o tecido instrumental. Parece folk convencional. Mas não o é de todo. É possível, no espaço de uma só canção, imaginarmos folk, bossa nova, psicadelismo ou pop sonhadora ruidosa, num espectro que vai de Joni Mitchell a Caetano Veloso, de Brian Wilson às texturas mais contemplativas dos Cocteau Twins. O som levita, é expansivo, e isso é novidade. “Estudei as propriedades do som a sério e o engenheiro de som percebeu bem o que era pretendido. Todas as canções têm uma qualidade um pouco sombria e uma atmosfera tranquila, é como se entrássemos num espaço e num tempo muito específicos quando ouvimos o álbum e era esse o objectivo.”

Depois da digressão que se seguiu ao lançamento do disco de 2015 – e que passou por Lisboa e Braga – sentia-se esvaziada. De seguida houve o encontro fortuito com Matt, o filme de Cassavetes e a vontade de abandonar São Francisco, onde vivia há dez anos, e de partir em direcção a Los Angeles. Acabaram por mudar-se os dois. “São Francisco acaba por ser uma cidade pequena. É fácil sentirmo-nos protegidos ali quando se entra em algumas lógicas de grupo. Nesse sentido é uma cidade onde é simples integrarmo-nos. Quando fui para Los Angeles essa lógica foi drasticamente reduzida.” Ainda assim, não considera que a mudança tenha tido efeitos directos sobre o novo disco.

“O ambiente que nos rodeia acaba por afectar aquilo que fazemos e criamos, mas neste caso não sinto que a qualidade da minha música tenha mudado muito. Manteve o mesmo tipo de propriedades. Por outro lado nunca tinha estado tanto comigo própria, sozinha, como em L.A., e isso foi novo. Tive oportunidade de me focar mais na minha música e isso foi muito importante. Tenho uma vida muito mais sossegada ali. Não conduzo. A cidade é meio desorganizada por isso não me arrisco muito nela. Às vezes passeio pelo meu bairro e é tudo. Oiço música e leio muito em casa. Se não fosse por causa de Matt, que é uma pessoa mais social, quase não sairia.”

Nela habita esse paradoxo entre gostar de estar no quase silêncio e ter de partir com regularidade pela obrigatoriedade de apresentar as canções ao vivo. “As digressões acabam por ser necessárias. Queremos partilhar as canções e o estar em palco faz parte disso”, resume. Quem já a viu ao vivo sabe que é capaz de criar um ambiente de alguma solenidade, embora sempre marcado por uma sensibilidade à flor-da-pele. “Tocar muitas vezes, o lado repetitivo dessa função, faz de mim uma melhor guitarrista e compositora. Faz com que entre mais nas canções e as viva de forma aprofundada. Mas por outro lado podemos saturar-nos também. É como tudo o resto”, ri-se, “imperfeito.”

Já em relação ao lado mais funcional de andar em viagem pelo mundo a tocar é igualmente pragmática. “Pode ser mentalmente e fisicamente tóxico porque estamos sempre num processo qualquer, a tentar dormir ou a arranjar comida, ou num misto de ansiedade e excitação, mas por outro lado é isso que me permite ir conhecendo o mundo e isso é um privilégio, mesmo se as condições estão longe de ser as ideais.”

A ideia de viagem acaba por estar presente no álbum, nem que seja no último tema, Aeroplane, apesar de ela afirmar que em trânsito raramente consegue completar ideias. “Vou tirando apenas apontamentos, tenho esboços de melodias e de letras no meu iPhone, e o avião e os aeroportos até são bons para isso, colocam-nos em contacto com o mundo e ao mesmo tempo isolam-nos dele, mas preciso de privacidade para aprofundar seja lá o que for. Não consigo focar-me em várias coisas ao mesmo tempo.”

Para já vai iniciar uma nova digressão, na qual será acompanhada pelo namorado, em sintetizadores, enquanto ela se ocupará como sempre da guitarra e voz. “Nunca como neste álbum senti que cada canção contemplava tantas ideias, cores, temperaturas e texturas”, haverá de dizer, “e que o grande desafio era sintetizar tudo isso apenas com a guitarra da forma mais gentil que conseguisse.” Objectivo totalmente conseguido.

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