Abdellatif Kechiche, capítulos 1 a 6: uma política da sensualidade

Do primeiro filme realizado pelo cineasta de origem tunisina, momento de ruptura face à tipificação da representação magrebina na França pós-colonial, ao banquete de sensualidade que parece suspender conflitos. De La Faute à Voltaire (2000) a Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro, que esta semana está nas salas.

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bruno simões castanheira

A primeira vez que vimos Abdellatif Kechiche num ecrã foi como actor: Le Thé à la Menthe, de Abdelkrim Bahoul (1984). Eram as aventuras pícaras, histriónicas, de um jovem argelino no Bairro de Barbès, em Paris, os seus tráficos e invenções — como a vida que inventa nas cartas que envia à mãe para Argel (um dia a mãe aterra em Paris para o visitar e...). A primeira vez que vimos um filme realizado por Abdellatif Kechiche foi La Faute à Voltaire (2000), onde a personagem de Jallel, jovem tunisino clandestino em França, vive a sua vida e os seus encontros.

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Depois de tentar o “casamento branco” para legalizar a situação (a noiva desiste no momento decisivo),  depois de cair e de se levantar num hospital psiquiátrico, Jallel deixa de vender fruta no metro e passa a vender rosas, experimentando Paris como viagem épica e sentimental. Nesse upgrade poético recita Pierre de Ronsard (poeta do século XVI) no metropolitano. Mas o sonho deste rei da evasão vai ser interrompido, a República francesa dirá não à integração e Jallel será apanhado pela polícia na estação de metro Nation. É enviado de volta para Tunes — o jovem de Le Thè à la Menthe também era forçado a regressar a Argel. La Faute à Voltaire desenrola-se entre dois enquadramentos diferentes, nos genéricos inicial e final, da estátua da Praça Nation Le Triomphe de la Republique, conjunto em bronze em que a figura da República está rodeada por alegorias da Liberdade, da Abundância, do Trabalho... A senhora Abundância, no início filmada de frente, parecendo oferecer flores ao espectador e estender a utopia republicana a Jallel, está de costas voltadas no final. É uma aliciante hipótese ver na estreia como cineasta de Kechiche uma complexificação, talvez resgate, da personagem a que dera corpo como actor no início da sua (breve) carreira como intérprete e onde haveria de encontrar André Téchiné. E ver, desse modo, uma continuidade e simultaneamente uma ruptura face ao que acontecera no cinema francês dos anos 80, aquele momento de afirmação da representação da população magrebina, de que o filme de Abdelkrim Bahoul constituiu passagem determinante. À precariedade da representação, à tipificação a que esse cinema, importante que foi no combate à invisibilidade na França pós-colonial, não conseguiu não obstante escapar (o subúrbio, a marginalidade..), Kechiche acrescentava — isso enforma ainda o seu cinema — a reinvenção sensual das personagens, transportando-as das margens para o centro da cultura francesa.

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O tunisino Jallel recita Pierre de Ronsard no metro exteriorizando o seu amor pela personagem de Élodie Bouchez. Em A Esquiva (2003), Krimo, para conquistar Lydia, pega em Le Jeu de l’Amour et du Hasard, de Marivaux. A França marginalizada põe as mãos na França clássica. Marivaux na banlieue. Numa escola representa-se Le Jeu de l’Amour et du Hasard, texto em que as personagens tentam disfarçar a condição social para chegarem ao ente amado e testarem os sentimentos. Mise en abyme: Krimo (Osman Elkharraz) aceita vencer as suas dificuldades de ser um outro e pega em Marivaux para conquistar Lydia (Sarah Forestier). O bairro é sala de teatro ao ar livre, espaço em que a reinvenção é acicatada pela palavra para vencer o determinismo social. O calão intromete-se na marivaudage. Há combate e utopia. E a utopia o cinema pode tentá-la, alterando a ordem estabelecida, mesmo se o resultado é o fracasso. A superação dos jovens de A Esquiva é abortada pela polícia, que os prende ao cliché da banlieue, Marivaux fica par terre e Krimo sempre fora de cena — um dos primeiros sublinhados da reserva, do desafasamento (e do voyeurismo) das personagens masculinas do cinema de Kechiche.

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A utopia foi um dos propulsores de O Segredo de um Cuscuz (2007): sentar à mesma mesa uma família magrebina e operária da cidade portuária de Sète, Sul de França — são essas as personagens —, e a elite da sociedade que, como espectadores, se poderia interessar por eles (a pungência da memorável sequência da refeição ultrapassa o tour de force, bate ali o coração do cinema como espectáculo popular). “Eles” seriam, no projecto inicial, os elementos da família Kéchiche. O cenário seria a casa familiar em Nice. A morte do pai de Abdellatif inviabilizou a ideia, mas a personagem de Slimane (interpretada por Habib Boufrez, amigo do pai Kechiche) é a homenagem à geração que chegara a França para trabalhar nas obras. Figura exangue na angustiante correria final do filme, em que tenta salvar o cuscuz e o seu restaurante e por isso não pode parar (para isso o filme não pode parar...) Slimane e O Segredo de um Cuscuz são “ajudados” pela dança da enteada Rym (Hafsia Herzi), numa espantosa performance de sacrifício e emancipação de que haverá variações no cinema do realizador.

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Por exemplo, Vénus Negra (2010), que começa por se singularizar na obra de Kechiche por ser um filme de época — segue as provações de Sarah “Saartjie” Baartman (1789-1815), mulher negra sul-africana, pela Europa do século XIX em que foi exibida como curiosidade e aberração, o corpo tocado, usado, objectificado pela curiosidade voyeurística e científica. O pacto com a duração das sequências no cinema de Kechiche contempla o êxtase, a saciedade e a saturação. Mas é em Vénus Negra (nas cenas de dança de Sarah, por exemplo) que o cineasta usa e abusa desse pacto. Isso e, num filme ensaístico e programático sobre o inferno que é o olhar dos outros, não se conseguir desenvencilhar da seguinte ambiguidade: a estigmatização de Sarah “Saartjie” Baartman acaba por ser fundamentalmente o espectáculo de que o filme também se alimenta.

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Regresso a Marivaux e a A Esquiva, como um diálogo com a memória,  como uma reiteração, o que acontece frequentemente no cinema de Kechiche: no final de A Vida de Adèle: Capítulos I e II, Adèle caminha em direcção ao seu destino, sozinha como Krimo no filme de 2003 (ou excluída como Krimo no filme de 2003); e se agora há La Vie de Mariane como antes havia Le Jeu de l’Amour et du Hasard, esta adaptação da novela gráfica Le bleu est une couleur chaude de Julie Maroh retoma o tema do determinismo social. É isso que impede Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Léa Seydoux) de transcenderem os obstáculos ao seu coup de foudre. Como que a confirmar a visão do fosso social inultrapassável,  Kechiche exemplificaria, na ressaca do pós-Palma de Ouro de Cannes (quando se “encontrou” um novo Truffaut ou um novo Pialat neste “romance de iniciação” francês...), com o momento em que os afectos entre ele e as actrizes foram estilhaçados pelas acusações de Adèle e de Léa, sobretudo desta que falou de uma rodagem “horrível” e de um cineasta colérico com quem não queria mais trabalhar. É a luta de classes, disse ele, a elite a decidir que o outro não pertence, não merece, o seu mundo.

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É edénico o mundo de Mektoub Meu Amor: Canto Primeiro. Ouvem-se tambores de conflito ao longe, onde anda um porta-aviões em manobras, mas a coexistência, talvez o tema maior do realizador de origem tunisina, é neste filme ainda uma dádiva da luz (São João e o Corão convivem em epígrafe no genérico). É o paraíso, um mundo anterior, antigo, Sète, à beira do Mediterrâneo. É o Verão de 1994, que não é aqui tanto uma data. É aquilo que “hoje” já não é possível. É também um “antes” do cinema de Kechiche, que só começou em 2000, e o cineasta permite-se uma ditosa suspensão, povoando Mektoub, Meu Amor — Canto Primeiro com motoristas que distribuem cuscuz sem a angústia e o sacrifício de O Segredo de um Cuscuz, invocando a integração republicana francesa sem que a estátua da Praça Nation, Le Triomphe de la Republique, possa virar as costas à expectativa como acontecia em La Faute à Voltaire e sem que ao frenesi dos corpos em dança possa ser atribuído o peso mortificante de Vénus Negra. E não procurando desculpas para o desejo e sem que o realizador possa ou queira escudar-se no ponto de vista das personagens para exercitar o seu voyeurismo - ele olha e o espectador também olha. Mektoub, Meu Amor — Canto Primeiro, filme sem amarras narrativas, que deflagra, é obra de um realizador sem medo (sem medo de si próprio) que o oferece ao espectador para usufruto. Esta frontalidade do desejo, este assumir-se como caçador da luz e da carne, não é dos dias correctos de hoje. É o Verão de Amin, Ophélie, Tony e Céline, e mesmo que suspeitemos que estas personagens caminhem em direcção ao nosso tempo e que o Canto Primeiro vai dar lugar a um Intermezzo mais sombrio (o realizador monta a continuação do filme neste momento) gozemos o Verão dos nossos amores.

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