Dezasseis vidas suspensas e um barco parado no Tejo

A desregulação liberal do mercado do trabalho e do comércio internacional e as fronteiras físicas dos Estados não podem ser prioritárias quando estão em causa direitos humanos.

Está um navio parado no Tejo há mais de um ano. Passei por ele inúmeras vezes e nunca o vi com olhos de ver até ler e ver as reportagens sobre o tema em diversos órgãos de comunicação social. Esta situação é a "prova provada" de como a falta de leis comuns internacionais, quer no campo dos direitos do trabalho, quer no campo do comércio internacional, leva a situações que são desumanas mas não ilegais. Vejamos o caso.

O navio Rio Arauca tem exploração venezuelana, país socialista com uma das maiores e melhores legislações em direito do trabalho. A PDSVA, empresa estatal venezuelana de exploração de petróleo, não conseguiu cumprir as entregas de crude com um país do Médio Oriente, o que originou uma penhora do navio em 2017. Ora, o Tribunal Marítimo de Lisboa executou esta penhora, sem dar atenção a nenhum outro fator nem a todo o contexto.

No entanto, a PDSVA, apesar de ser a titular da dívida, não é a dona do navio, que pertence a uma empresa cipriota, a BSM. Questiono-me se o Tribunal Marítimo Português pode executar uma dívida de uma empresa a outra, ou seja, se a PDSVA tem a dívida mas não é a dona do navio, pode a empresa proprietária ser penhorada? Para complicar mais as coisas, o navio navega sob a bandeira das ilhas Marshall e os contratos dos tripulantes dos navios, apesar de serem pagos pelo Chipre (e continuam a ser pagos, nunca falharam!), respeitam os regulamentos das ilhas Marshall, onde as leis laborais são das mais desreguladas do mundo: não há salário mínimo, não há máximo de horas trabalhadas por semana ou dia, não existe segurança social nem seguros de acidentes de trabalho.

Perceberam a ironia? A Venezuela, país socialista, adquire o serviço de leasing a uma empresa cipriota que tem o navio com a bandeira das ilhas Marshall, país neoliberal. Irónico, não?

A bordo, depois da primeira tripulação ser rendida, estão 16 marinheiros, alguns há quase um ano longe de casa, sem nada para fazer! Isto, porque apesar de a dívida ter sido paga pela Venezuela, o navio sofreu um segundo arresto porque, ao não ter dinheiro para continuar a viagem, está sujeito ao pagamento de uma taxa no porto de Lisboa de cerca de 20.000 euros por dia. Logo, segundo arresto. A vida destes homens está então nas mãos de uma quarta empresa, a Orey Shipping, que assumiu estes encargos por uma questão humanitária e que contratou a Knudsen para que a tripulação do petroleiro não se veja isolada levando-lhes mantimentos e água. A mesma empresa assume os encargos da rendição dos homens, dos abastecimentos ou dos processos de desembarque com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Confusos?

Muito. A grande questão é que em matérias fundamentais, como o comércio internacional, as soberanias nacionais falam mais alto do que a premente necessidade de se encontrarem normas jurídicas internacionais. Em casos como o descrito, recorre-se ao Direito Privado Internacional que indica quais as leis dos Estados envolvidos a aplicar em matérias da área do trabalho, contratual ou comercial que necessitem do poder jurídico.

Só que num mundo cada mais mais global, onde as pessoas e bens circulam com maior rapidez entre Estados, precisamos de encontrar respostas comuns para problemas globais. Não é utópico mas sim urgente que o Direito Internacional Público estabeleça normas jurídicas internacionais aplicadas ao mercado do trabalho e ao comércio internacional. A desregulação liberal do mercado do trabalho e do comércio internacional e as fronteiras físicas dos Estados não podem ser prioritárias quando estão em causa direitos fundamentais como os direitos humanos.

E não é demais lembrar que “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.” O artigo 23.º da Carta Fundamental dos Direitos Humanos não está a ser aplicado aos 16 homens cujas vidas estão suspensas dentro de um barco parado no Tejo. Paradas no tempo. Até quando?

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar