O homem que Dostoiévski pôs dentro de um crocodilo

Rui Neto estreia no São Luiz O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante. Até 9 de Fevereiro, o insólito, o absurdo e o horror medem forças em palco.

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ESTELLE VALENTE

Foi já durante os ensaios de O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante, criação de Rui Neto a partir de um conto de Dostoiévski, que a realidade resolveu pedir meças à ficção, como o faz regularmente – mesmo quando se trata de uma situação tão improvável e estapafúrdia quanto alguém ser engolido por um crocodilo. Em Janeiro deste ano, uma cientista que tentava alimentar um desses animais num centro de pesquisas no Norte da Indonésia foi puxada para dentro dos aposentos do réptil e parcialmente devorada. E, de repente, o absurdo proposto pelo autor russo parecia acercar-se do carácter insólito dos ciclos noticiosos.

Mas não foi por aí, pelos faits-divers que se tornaram o clickbait perfeito para os sites que disseminam “extraordinários acontecimentos irrelevantes” por toda a Internet, que Rui Neto começou a imaginar o que seria o texto de Dostoiévski transposto para a linguagem teatral – espectáculo que agora estreia no São Luiz, em Lisboa, onde está em cena até 9 de Fevereiro. “Há três ou quatro anos, andava à procura de algum material porque não estava muito inspirado para escrever com rédea solta. Depois disso até acabei por escrever outros espectáculos meus, mas na altura deparei-me com o conto e achei que tinha tudo aquilo que queria”, recorda ao PÚBLICO. E o que queria era, por um lado, “um discurso político que apontava para hoje e tinha ecos de coisas muito próximas”, e, por outro, o acentuado “lado surreal”. A que se juntava ainda o bónus de se tratar de um texto inacabado, o que lhe permitia dessacralizar “a autoridade do autor e continuar, alterar e mexer na história”.

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A simplicidade da narrativa, que haveria de remeter Rui Neto para um universo infantil, dava-lhe também a elasticidade suficiente para poder moldar as personagens em função do espectáculo que pretendia construir. E que, para alguém que encenara Huis Clos, de Jean-Paul Sartre, e sempre trabalhara a partir de ambientes mais densos e sombrios, representava ao mesmo tempo um desafio estimulante e um teste às suas inseguranças. Até porque o conto diferia razoavelmente das obras que conhecia de Dostoiévski, como O Jogador ou Noites Brancas, feitas de uma outra densidade, e abria o espaço para uma comicidade que não sabia se teria arcaboiço para trabalhar. A tal história de um homem que é engolido por um crocodilo sem perder a vida, e que se torna de interesse geral para a ciência ou para os pequenos poderes, lembrou-lhe de imediato um dos filmes mais marcantes da sua infância – Pinóquio.

“Esta história surpreendeu-me porque a ideia que tinha do Dostoiévski era uma coisa mais soturna, pesada, densa”, diz Rui Neto. “Quando me deparei com este lado surreal da sobrevivência dentro de um animal, achei imensa graça.” Tornou-se então fundamental para o encenador encontrar um jogo de contrastes entre o absurdo e burlesco da situação, e a estética mas soturna que lhe é natural. Algo que resulta numa relação dissonante entre o narrador e a história contada pelas personagens (a cargo de Rui Melo, Ana Guiomar, Miguel Sopas e Miguel Raposo): enquanto a voz solene e sinistra do narrador aponta para um relato de horror, toda a restante história de Ivan, adulto em roupa de escuteiro, obcecado com uma lua-de-mel nas Galápagos e em fotografar-se com um crocodilo num parque de São Petersburgo, assenta num permanente ridículo.

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Na verdade, é como se assistíssemos a uma luta pelo controlo da história entre a narração e a acção. Ao mesmo tempo que o cortejo de especialistas se vai demorando a pensar formas eficazes de explorar e enriquecer com a situação, em vez de propor uma real ajuda a Ivan. Enquanto isso, Ivan vai-se eternizando na condição de um homem com fome de mundo que acaba vítima da fome de um animal.

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