Em Portugal, a culpa não morre solteira, vive solteira

As lutas contra a corrupção, pela transparência e pela lisura de procedimentos são lutas que merecem ser travadas. Pela saúde da nossa economia, mas também da nossa democracia.

Na semana passada, quando saía de Braga para ir à Rádio Renascença fazer o programa Conversas Cruzadas, cruzei-me com um amigo, João Leite Ribeiro, também professor na EEG.UMinho, que me perguntou qual era o tema do dia. Ao saber que a seria dedicado aos escândalos da Caixa Geral de Depósitos, denunciados por Joana Amaral Dias, pediu-me para dizer isto em antena: “É mentira que em Portugal a culpa morra solteira; na verdade, ela não morre, vive solteira!”.

Ao sabermos como foi danosa a gestão da Caixa (e uma coisa é conhecer quanto se perdeu, outra é conhecer os procedimentos), é impossível não lhe dar razão. Em especial porque vários crimes estarão prescritos. Cada ano de silenciamento contribuiu para que mais actos de gestão danosa (para não falar de corrupção e tráfico de influências) prescrevessem, ficando de fora da alçada da justiça.

Houve tempos em que não era fácil de explicar os custos económicos da corrupção e da falta de lisura de procedimentos. A dificuldade em medi-los e, consequentemente, de estimar os seus impactos tornavam a discussão etérea. Sobretudo, porque havia sempre quem negasse que a corrupção e o amiguismo fossem problemas endémicos.

Neste momento, é impossível disfarçar. Ao ver a forma como o crédito foi concedido na Caixa, e os milhares de milhões assim destruídos, é uma estultícia negar o seu impacto económico. Depois, lembramo-nos de que a Caixa é apenas um banco, que houve vários a conceder empréstimos nos mesmos moldes, e ficamos com uma noção aproximada do problema. Finalmente, pensamos no crédito que deixou de ser concedido a empresas com bons projectos de investimento e que, por falta de financiamento, não os puderam concretizar. Admira que estejamos estagnados desde 2000?

Mas se já ninguém pode negar o impacto económico desta teia de interesses que se vive em Portugal, é bom lembrar que há cada vez mais dados que descrevem os estragos no próprio sistema democrático. Isso foi relatado ontem, aqui no Público. Esses estragos incluem efeitos óbvios, como os indicadores de satisfação com a democracia, mas também outros mais subtis, que estão ligados ao grau de exigência dos eleitores.

Quero sublinhar este último aspecto. Instituições mais transparentes, com maior lisura de procedimentos, onde a isenção é uma regra contribuem para criar eleitores exigentes e mais capazes de sacrificar vantagens de curto prazo em nome de políticas cujos efeitos benéficos são diferidos no tempo. Este parágrafo parece idealista, mas está alicerçado em dados bastante sólidos.

Num trabalho publicado em livro, Pedro Magalhães e Tiago Abril relataram os resultados de uma experiência que fizeram com um inquérito online. Nele, confrontaram os inquiridos com diferentes cenários e de seguida perguntaram como votariam nas eleições seguintes. No fim, mostram que o grau de satisfação dos eleitores com o governante depende, naturalmente, de ele tomar decisões com as quais concordam. Mas depende ainda mais de medidas a que podemos, genericamente, chamar justiça procedimental: a maneira como as decisões são elas próprias tomadas; a sua transparência, neutralidade e a sensação de que a voz das pessoas foi ouvida pelo poder político.

Claro que podemos, e devemos, desconfiar destes resultados. É fácil mostrarmos uma atitude positiva e pedagógica em inquéritos, mais difícil é que essa intenção seja concretizada na prática. Mas, na verdade, parece que é mesmo assim.

Num outro trabalho, publicado este mês na revista Political Psychology, eu e o Pedro Magalhães analisámos como a conjuntura económica influencia o voto. Não há grandes novidades, todos sabemos que, quanto melhor estiver a economia, maior é a probabilidade do governo ser reeleito. Uma das consequências disso, logicamente, é a de que os governantes têm incentivos para governar de forma a ter bons resultados económicos no curto prazo, eventualmente sacrificando o longo prazo.

Neste trabalho, mostrámos que a relação não é linear. Usando dados para países da OCDE, concluímos que nos países com índices mais elevados de lisura procedimental os eleitores dão menos importância a aspectos económicos de curto prazo, como o crescimento económico do ano anterior. Os nossos resultados foram impressivos: nos países com melhores indicadores de lisura procedimental, o voto nem sequer é influenciado pela conjuntura económica. Estes resultados foram obtidos depois de filtradas várias outras variáveis que influenciam as eleições e são bastante robustos, não se alterando caso se usem outros indicadores, como índices de percepção de corrupção: em países mais limpos, a conjuntura económica é desvalorizada pelos eleitores.

O indicador que usámos para medir a lisura procedimental é o chamado “undue influence”, “influência indevida”, do World Economic Forum, que mede a transparência e o grau de isenção das instituições públicas. Neste índice, em 32 países, Portugal é o 23º com pior classificação. Fazemos parte dos países em que a conjuntura económica é importante no momento do voto.

É legítimo que se questione se estes resultados são aplicáveis a Portugal. Num estudo internacional, comparam-se países diferentes entre si e a extrapolação para países individuais deve ser feita com cuidado. Mas tudo indica que os resultados se aplicam ao nosso país. Num outro trabalho – este em co-autoria com Francisco Veiga, meu colega na EEG.UMinho –, eu e o Pedro Magalhães estudámos a forma como a transparência influencia o voto nas autarquias portuguesas. Esse trabalho, que será publicado na Kyklos, uma revista de Economia Política, confirma os resultados anteriores.

Na eleição de 2013 (ano importante porque tínhamos cá a troika), nas autarquias mais transparentes, o aumento dos gastos das câmaras foi eleitoralmente penalizado; já nas câmaras menos transparentes, o despesismo foi premiado pelos eleitores. Quando o sistema é opaco, o eleitor deixa-se influenciar facilmente pelos gastos públicos, que, regra geral, são visíveis. (Até porque, noutro trabalho, Francisco Veiga e Linda Veiga já demonstraram que, em anos eleitorais, as autarquias aumentam os gastos em obras públicas com bastante visibilidade.)

Em conclusão, as lutas contra a corrupção, pela transparência e pela lisura de procedimentos são lutas que merecem ser travadas. Pela saúde da nossa economia, mas também da nossa democracia.

P.S. – Os três trabalhos referidos neste artigo são resultado de uma bolsa de investigação atribuída pela FCT, que ainda está a decorrer.

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