O Prémio Costa vai para a “extraordinária” biografia de uma sobrevivente do Holocausto

The Cut Out Girl, de Bart van Es, diz-nos como sobreviveu — e como viveu — Lien de Jong, hoje com 85 anos. É o Livro do Ano para o Prémio Costa.

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Bart van Es, autor de The Cut Out Girl, junto a Lien de Jong na entrega do Prémio Costa Reuters/HENRY NICHOLLS

A mulher que subiu ao palco na terça-feira à noite para estar ao lado de Bart van Es no momento em que ele recebia o Prémio Costa para Livro do Ano chama-se Lien de Jong, tem 85 anos e está contente porque o escritor quis contar a história dela. “Sempre disse que sem família não temos uma história, mas agora, graças ao Bart, eu tenho uma história e também uma espécie de família […] que vem do passado. O Bart reabriu os caminhos da família”, disse a mulher que está no centro da biografia The Cut Out Girl: a Story of War and Family, Lost and Found, que valeu a este professor de Oxford o prémio no valor de 30 mil libras (34 mil euros).

Durante a Segunda Guerra Mundial, numa Holanda que colaborou, provavelmente de forma mais eficiente do que qualquer outro país, na entrega de todos os cidadãos judeus – homens, mulheres, crianças – aos nazis, que depois os enviavam para campos de extermínio e de trabalhos forçados, os pais de Lien de Jong confiaram-na a outra família na esperança de a salvarem. Sabiam que corriam um risco terrível e deixá-la com um casal holandês que pudesse educá-la como sua pareceu-lhes a única solução.

“Ela foi-me retirada pelas circunstâncias. Que possam, com a melhor das boas vontades e com sabedoria, cuidar dela”, escreve a mãe de Lien em Agosto de 1942, na carta que dirige à família que viria a cuidar da sua filha. Tanto ela como o marido morreriam no complexo de Auschwitz.

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Lien em 1945 The Cut Out Girl

Para escrever The Cut Out Girl (Fig Tree, 2018), o professor de Literatura Inglesa que tem escrito sobre Shakespeare e que bem cedo trocou a Holanda, onde nasceu, pela Inglaterra, teve de mergulhar no passado de duas famílias: a da biografada e a sua, já que foram os seus avós, Jannigje e Henk van Es, que a acolheram durante a guerra. Bart van Es já ouvira falar de Lien (diminutivo de Hesseline) e de como, terminado o conflito, nos anos 1950, se afastara dos Van Es na sequência de um desentendimento, de um mal-entendido de que ninguém queria falar.

“Uma carta foi enviada e uma ligação quebrou-se”, escreve o autor na primeira página do prólogo, numa passagem em que coloca o leitor na cozinha do apartamento de Lien. “Ainda hoje, quase 30 anos depois, se sente magoada ao falar destas coisas.” Que versão teria ela do que acontecera depois da guerra?

Para responder a esta e a outras perguntas, o autor vira-se obrigado a seguir-lhe o rasto e descobrira que vivia agora em Amesterdão. Vencidas as muitas resistências iniciais de Lien, que estava relutante em regressar àquele passado doloroso, encontraram-se e, graças às muitas conversas que tiveram desde 2014, ano em que o escritor começou a trabalhar neste projecto, tornaram-se amigos. Van Es descobriu que ela guardara muitos documentos relativos à sua vida e que, depois de ter passado por casa dos seus avós, estivera noutra família de acolhimento e que sofrera maus tratos, tendo sido até vítima de violência sexual.

“É um livro muito importante. É uma história que nunca teria sido contada se ele não tivesse ido atrás dela. Todos achámos que tem um enorme eco no que se passa hoje no mundo, com tantas pessoas deslocadas e tantas histórias que ficam por contar”, disse a presidente do júri, a apresentadora da BBC Sophie Raworth, aqui citada pelo diário The Guardian, elogiando em seguida a escrita de Bart van Es e garantindo que a obra tem vindo a ser subestimada. “Todos fomos surpreendidos por ela. Sentimos que era uma jóia escondida que queríamos pôr sob os holofotes.”

Lidas as críticas ao livro publicadas por muitos jornais e revistas britânicos, na sua maioria muito elogiosas, saltam à vista adjectivos como “assombroso”, “intenso”, “elegante”, “luminoso”, “comovente”. Para Raworth, The Cut Out Girl tem ainda o mérito de, através de uma narrativa bem urdida que junta duas famílias, pôr a Holanda a olhar para o seu passado colaboracionista.

Recorda o diário que 4000 crianças judias sobreviveram à guerra no país ao permanecerem escondidas mas, dessas, apenas cerca de 350 continuaram a viver com famílias não-judias depois do conflito. Lien, que deixara a casa dos Van Es fugida à polícia e que acabara por viver junto da outra família de acolhimento um período verdadeiramente traumático da sua infância e juventude, pediu para regressar mais tarde. E fê-lo, ficando até que se deu a ruptura que este livro procura explicar e reparar. Diz o autor que os seus avós, ambos membros da resistência holandesa, não foram capazes de compreender até que ponto a perda dos pais e as violações durante a guerra a tinham marcado para sempre.

Contar a história da menina que os avós ajudaram a salvar dos nazis mudou a sua vida, reconhece o escritor, que lhes dedica o livro, assim como aos pais de Lien, Charles e Catharine de Jong-Spiero. Este livro é um reencontro das duas famílias e, disse-o o autor ao receber o Prémio Costa, uma homenagem aos Van Es, “que mostraram tanta coragem quando muitos não o fizeram”. É também, e sobretudo, uma demonstração do “amor” que sente por Lien, a mesma mulher que ainda hoje faz questão de dizer que só nasceu depois da guerra.

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