Resident Evil 2, um clássico maturado

O jogo de terror e sobrevivência regressa com uma versão que compreende o seu legado e injecta-o com tensão, atmosfera e puzzles que não destoam 2019.

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Quando começou a circular a notícia de que Resident Evil 2 teria direito a um remake, foram vários os que se questionaram como é que a Capcom poderia mexer no clássico sem o estragar, sem perturbar as idílicas memórias que se tinham dos protagonistas, locais e atmosfera. Crentes e descrentes têm agora a sua resposta: respeitando o legado.

Tal como na versão publicada originalmente na PlayStation, também na nova publicação temos direito a duas campanhas narrativas diferentes. Levados de embalo até Raccoon City, local infestado por zombies de várias estirpes, Leon S. Kennedy e Claire Redfield são novamente os protagonistas. Enquanto Leon está a cumprir o seu primeiro dia na força policial quando se depara com uma epidemia sem solução aparente, Claire está à procura do seu irmão, Chris. 

São dois arcos narrativos que proporcionam momentos díspares, mas que se vão intersectando. Isto resulta graças à curiosidade do jogador: quando os dois se encontram, a pergunta óbvia é: o que terá passado o outro até chegar ali? O argumento conta ainda com a inequívoca presença de Ada, que serve para suscitar a suspeição e testar confianças. Porém, a escrita não é o pulmão do jogo. A Capcom não podia mexer muito no material original. Entre 1998 e 2019 o género foi inundado por histórias familiares, o que acabou por subtrair ao factor novidade.

A longevidade está assim assegurada, com as duas campanhas a ocuparem aproximadamente dezassete horas, percorrendo os recantos e resolvendo os puzzles propostos com a calma necessária para evitar passos em falso. Resident Evil 2 continua a ser o fascínio pelo detalhe, pela atenção que a produtora nipónica colocou em cada metro do caminho.

Friamente, o jogo não tem muitos locais diferentes. Todavia, como cada cenário permite uma descoberta à laia de mais um item recolhido e de mais uma fechadura aberta depois de um puzzle ter entregado uma chave ou uma combinação, raramente se sente o estar preso ao local.

A Capcom sabia que um labirinto assim precisava de mapas. Na PlayStation 4, a consulta faz-se no touchpad do DualShock 4, com a coluna do comando a ser usada para sublinhar algumas acções, como a abertura de uma fechadura. São apontamentos sonoros que ajudam à completa imersão do jogador nas terras de Raccoon City.

Resident Evil 2 caminha perfeitamente a linha que separa a emocionante procura por uma possível saída durante minutos e a frustração de estar perdido. A obra permite a experimentação sem ser frustrante. São puzzles à moda antiga, ou seja, o jogador examina itens e vai resolvendo enigmas com pistas recolhidas anteriormente. São também puzzles resolvidos por fases, como arranjar pilhas para alimentar um detonador e só então recolher o item necessário na sala que ficou acessível depois da explosão para resolver um puzzle ainda maior e composto por várias camadas. 

Pode parecer trabalhoso, mas como nunca são demasiado frustrantes, estes enigmas colocam os fãs investidos no jogo, dão-lhe substância e removem a obra da lista de títulos de terror que parecem ser um longo corredor com sustos fáceis. Quem se dedicar a Resident Evil 2 é recompensado de forma proporcional a essa dedicação. 

Nunca irremediavelmente perdido, o jogador participa numa excelsa mesclagem de terror e sobrevivência. Feito de uma matéria mais espessa que o terror fácil, o jogo subverte as expectativas do que se espera ao dobrar a esquina. Esperamos o salto da cadeira e acontece a desfiguração do humano passado a zombie; não esperamos nada e sente-se o arrepio, o crescendo da tensão porque vimos mais um tecido muscular transformado em papa. Toada pesada ao longo da aventura, atmosfera entranhada até ao osso, tanto pelas divisões visitadas, como pelo excelente design das criaturas enfeitiçadas pela nossa carne fresca e sã.

Os cenários, desde o denso nojo dos esgotos até ao esterilizado laboratório, elevam o design graças ao poder do hardware actual. O Tyrant impõe o respeito necessário para sentirmos a aflição de ouvir os seus passos, os Lickers mostram que o chão não é a única superfície onde se podem movimentar, confirmando que o pânico pode ser anunciado pelas paredes, os cães testam os reflexos e fazem-nos temer a passagem pelo canil, que dá lugar ao calafrio de ler a palavra “morgue” no mapa. O que se passa em Resident Evil 2 começa a passar-se pela antecipação de chegar à próxima secção e pelo medo de ser tudo aquilo de que estamos à espera.

A sobrevivência está na forma como não têm que lutar contra tudo e contra todos. O espaço que têm para transportar os itens recolhidos também escasseia. Recolher, combinar e descartar itens é um ensaio que tem que ser seguido com uma metodologia segura.

Além das armas (algumas precisam de várias quadrículas), esta gestão conta também com munições, ervas para restaurarem a saúde da personagem e outros itens que são necessários para a progressão. Por exemplo, um Modulador de Sinal. Quando têm todos espaços preenchidos e precisam de recolher algo para progredir, é quando o jogo obriga a regressar a uma das caixas para depósito. Podem descartar os itens, claro, mas tal exercício é a sua destruição permanente e há sempre a dúvida sobre se não será necessário minutos depois. 

Este factor aumenta a tensão, pois condiciona a forma como se aborda cada confronto, fazendo o jogador reflectir sobre cada bala disparada. É também motivo para alívio e até alguma contemplação quando temos munições (que pensamos ser) de sobra ou espaços livres no armazenamento, como se fossemos bons alunos de Marie Kondo. 

A Capcom foi bastante inteligente ao compreender que alguns pontos tinham que ser trabalhados antes de chegarem ao mercado em 2019. A câmara de jogo, por exemplo, em vez de oferecer panorâmicas fixas é agora dinâmica e a acção é agora vista de uma perspectiva por cima do ombro da personagem. 

Tecnicamente, Resident Evil 2 é um portento, não só nas texturas possíveis graças ao motor de jogo que alimentou Resident Evil 7, mas também graças aos efeitos que preservam a identidade do original, dando-lhe uma modernidade que não fica fora de tom em 2019.

A sonoplastia consegue uma banda sonora de topo, ainda que a vocalização não seja sempre a mais convicta. Aliás, a performance dos actores não ajuda muito a disfarçar algumas linhas de diálogo e expressões proferidas que parecem resquícios da era a que a obra original pertence. Entre o cliché e a ocasional falta de emoção, ouvir “Que raios?” quando uma criatura dantesca se ergue no ecrã é o esgar garantido. Ainda assim, não quebra a relação entre fã e obra.

Resident Evil 2 é um triunfo claro. Repensado até ao ínfimo pormenor, a matéria-prima foi aprimorada. E enquanto lhe dedicava horas e horas, ficou claro que é suficientemente novo para os fãs da velha guarda terem algo para descobrir e também para se afirmar como um “novo” jogo de terror em 2019. Sejam novatos no mundo de Resident Evil ou fãs que acumularam dias de dedicação à versão original, o resultado será o mesmo: o apaixonarem-se pela obra, sentindo falta da tensão quando tiverem descanso, sentindo falta da pressão quando chegarem à conclusão que terminaram tudo o que o jogo tinha para mostrar. Até lá, terão um excelente jogo pela frente.

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