Uma Europa de Zeus

Se o principal argumento contra uma negociação de boa-fé com o Reino Unido é a possibilidade de outros países começarem a querer sair nas mesmas condições, talvez seja altura de analisar de uma vez por todas o Estado mental da União Europeia e não tentar manter tudo controlado com uma camisa de forças.

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LUSA/ANDY RAIN

Se em 1624 John Donne já fosse woke talvez colocasse a métrica de parte e escrevesse "No human being's an island", salvando quase com 400 anos de antecedência Theresa May do seu isolamento actual.

Theresa May assumiu a liderança do Governo britânico em 2016, tentando transmitir uma mensagem de união em torno do desígnio que é o cumprimento do “Brexit”, da forma que melhor sirva o interesse do Reino Unido e, consequentemente, dos britânicos. E isto apesar de ter sido uma defensora da permanência do Reino Unido na União Europeia (UE). Infelizmente essa mensagem nunca colou totalmente, talvez porque ninguém compreendeu ou quis compreender a espécie de palíndromo de feira com que ela resumiu a sua visão, a frase “Brexit means Brexit”.

Como muito do debate durante a campanha para o referendo se centrou em tópicos muito específicos com chavões, verdades distorcidas e mentiras típicas do debate político que predam as emoções primárias dos votantes, e após o resultado do referendo não se verificou o apocalipse previsto por muitos a nível económico e social, só muito recentemente é que a maioria das pessoas começa finalmente a encarar o “Brexit” como algo concreto e com implicações reais na sua vida quotidiana, por via dos problemas económicos que um hard “Brexit” poderá desencadear de parte a parte.

Não pretendo aqui beatificar Theresa May, que não faz mais do que aparentar ser a única adulta presente na sala. Muitos dos parlamentares e governantes britânicos e os seus homólogos europeus comportam-se com uma irresponsabilidade típica de quem sente que está totalmente protegido dos efeitos nefastos de uma saída sem acordo, levando até ao limite um perigoso bluff quando está em jogo em modo all-in a estabilidade dos seus eleitores.

Internamente, May tem de lidar com os seus tímidos apoiantes que vão trocando de barricada de forma atabalhoada: os conservadores que, ao comportarem-se como a raposa, dizem estar dispostos a sair com a boca, mas com os membros agarram-se desesperadamente à permanência; os conservadores revolucionários que preferem arrastar o país para uma saída sem acordo do que ceder a imposições da UE, vista com desconfiança; e o partido da oposição propriamente dito, cuja liderança se recusa desde o referendo a tomar uma posição inequívoca sobre o “Brexit”, limitando-se a criticar qualquer acção do Governo pois, não se querendo revelar adeptos da saída para não trair parte do eleitorado moderado, também não nutrem grandes simpatias pelas dificuldades que a UE traria à implementação do seu programa, no mínimo, disruptivo.

Do outro lado da Mancha temos assistido, desde o dia da votação, a comportamentos como os verificados nos momentos seguintes à rejeição do acordo de saída quando, no Twitter, um "Donald Trump polaco" apelou de forma muito menos subtil do que aquilo que pensa para que o Parlamento britânico retrocedesse nas suas intenções de levar o “Brexit” em frente, ignorando o resultado da consulta popular. Mário Centeno, por exemplo, revelou acreditar ainda haver margem para um segundo referendo, dado que as pessoas tinham votado sem ter a informação toda. Esta argumentação fez-me esfregar os olhos e, por instantes, pensar que tinha na televisão Cavaco Silva, por ter feito ressonância com a famosa boutade “Quando pessoas inteligentes dispõem da mesma informação, é inevitável que elas cheguem às mesmas conclusões” (uma visão que ignora completamente as diferentes motivações e convicções de cada indivíduo).

E são estas intervenções que colocam a nu a forma despeitada como a UE tem lidado com a saída do Reino Unido, tentando impor condições de saída intransigentes que, creio, não são as óptimas possíveis para todas as partes envolvidas. E isto apenas com o objectivo de castigar o Reino Unido pela sua decisão, de forma a que mais nenhum país venha a ter ideias semelhantes no futuro. Não creio que esta forma de confrontação seja a mais indicada para a saúde da União, pois ignora o problema grave para a democracia britânica e europeia que se desencadearia se os primeiros invertessem a marcha do “Brexit”, mesmo com um novo referendo. Nenhum país gosta de ser humilhado e o ressentimento fica vivo durante muitos anos na memória colectiva, tal como ignora o clima de intimidação que ameaça a soberania dos diferentes estados que ousam divergir do caminho de uma “cada vez maior integração”.

Se o principal argumento contra uma negociação de boa-fé com o Reino Unido é a possibilidade de outros países começarem a querer sair nas mesmas condições, talvez seja altura de analisar de uma vez por todas o estado mental da União Europeia e não tentar manter tudo controlado com uma camisa de forças.
 

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