Os novos sonâmbulos

As consequências sociais e políticas da crise financeira e das décadas que a precederam da agenda neoliberal são hoje visíveis em toda a parte.

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1. Entre o Fórum Económico Mundial do ano passado e o deste ano, na célebre “Montanha Mágica” suíça, o número de jactos privados que aterraram nas imediações aumentou 50%, para 1500. Como dizia alguém, uma preciosa ajuda para combater as alterações climáticas. Do outro lado da moeda, um relatório da Oxfam publicado na véspera do encontro fazia a seguinte contabilidade: “Enquanto as fortunas dos milionários aumentaram 12% no ano passado – ou 2,5 mil milhões de dólares por dia –, a metade mais pobre (3,8 mil milhões de pessoas) viu o seu rendimento cair 11%.” Outros relatórios de outras instituições publicam sistematicamente resultados idênticos. Ano, após ano, após ano. Há um bom par de anos, sobretudo depois da crise financeira de 2008, os relatórios anuais do próprio fórum insistem em que as desigualdades dentro dos países e entre eles não param de aumentar, chamando a atenção para o risco que isso significa e defendendo que é preciso inverter uma tendência que teimosamente continua a acentuar-se. Talvez pela razão simples de que nada de essencial se fez para que isso acontecesse, além do diagnóstico.

2. Normalmente, o mood que a imprensa regista deste acontecimento mundial, que reúne em Davos, desde 1971, a elite económica e a elite politica mais um sem-número de gurus, especialistas e jornalistas, se não tivesse outra utilidade, permitia tirar a fotografia ao estado do mundo, mesmo que retocada pela distância a que a montanha suíça se encontra das pessoas de carne e osso que se conseguem ou não fazer ouvir, dos conflitos e da miséria que persistentemente atingem milhões de vidas. Este ano não foi diferente. A fotografia apenas revelou o crescente pessimismo e as nuvens cinzento-escuras que se acumulam sobre o mundo, incluindo sobre a economia global, com uma componente porventura mais visível e mais dramática do que se tem sentido nos últimos encontros. De repente, as consequências políticas da crise financeira e da Grande Recessão que se lhe seguiu estão aí, diante da vista de toda a gente, indisfarçáveis. Quando era possível reduzir as consequências da globalização à sua dimensão social, traduzida em estatísticas globais, era mais fácil respirar em Davos. Agora, o ar ficou rarefeito, a incerteza mais palpável e as incógnitas sobre o futuro que qualquer investidor tem de incluir na sua equação tornam-se mais prementes. E, naturalmente, os políticos não têm tanta coisa para dizer. Muitos dos mais importantes nem chegaram a comparecer. “Os governos estão a improvisar em desespero, muitas vezes com péssimos resultados, para enfrentar as crises políticas do momento, sem tempo para os desafios climáticos ou tecnológicos do nosso tempo”, resume o Politico.

3. Conhecemos as nuvens cinzentas que se acumulam sobre a economia mundial. A guerra comercial lançada pelos EUA contra a China – e contra quem seja preciso – é um novo factor de incerteza. A desaceleração da economia chinesa para valores que não se registavam há 29 anos, praticamente desde que Deng declarou aberta a batalha pelo “glorioso” enriquecimento do seu país, é suficiente para provocar arrepios de frio em quase todo o mundo. Em 2017, Xi Jinping apresentou-se em Davos como o novo líder da globalização dos mercados contra as primeiras salvas da America first do recém-chegado Donald Trump. Por momentos, as elites mundiais ainda se deixaram deslumbrar. Hoje, na sua maioria, já não. Já lá vai o tempo do peaceful rising. Um pouco por todo o mundo, incluindo na Europa, começam a fazer-se contas não apenas económicas ao expansionismo chinês. Na Europa, a maior economia exportadora está em processo de desaceleração. E sabemos que, quando a Alemanha se constipa, há risco de gripe, para dizer o mínimo, na maioria das economias do euro. Nos EUA, o tempo ainda está ensolarado, embora os analistas avisem para o eventual efeito de boomerang das guerras comerciais de Trump. E, last but not least, o “Brexit” teima em pairar sobre a economia europeia e mundial com nuvens cada vez mais carregadas. O pânico começa a tomar conta das grandes empresas instaladas no Reino Unido e dos meios empresariais europeus. Em Davos, reportam os jornais, o mês de Março está a ser esperado com grande nervosismo pelos investidores: rima com “Brexit” e com a deadline das negociações comerciais entre os EUA e a China.

4. Mas os homens de negócios já se reuniram em Davos em momentos de maior pânico nos mercados e na economia, quando, por exemplo, a crise financeira rebentou no coração do sistema, e tiveram de contar com a rápida e robusta intervenção dos governos para salvar bancos e empresas, estimular as economias e impedir que uma Grande Recessão inevitável se transformasse numa Grande Depressão. Mas nessa altura havia não apenas o conforto da intervenção política, como a esperança de que, passada a tempestade, viriam os dias melhores do regresso ao business as usual. E vieram, só que desta vez não foi exactamente como das anteriores. As consequências sociais e políticas da crise financeira e das décadas que a precederam da agenda neoliberal são hoje visíveis em toda a parte, incluindo nas grandes economias desenvolvidas, com o crescimento imparável de uma mistura tóxica entre os movimentos populistas, nacionalistas e proteccionistas, que não gostam das elites de Davos nem da globalização. A defesa da globalização já teve melhores dias, porque já ninguém pode ficar indiferente às suas consequências sociais. As promessas piedosas de combate à pobreza, à exclusão e às desigualdades, que foram o mantra das últimas sessões sem qualquer resultado visível a não ser de tranquilizar consciências, transformaram-se em ameaças políticas de elevado risco. Trump, que foi bem recebido há um ano, graças à redução drástica de impostos para as empresas, ficou em casa a tratar do shutdown. Ele próprio foi o primeiro a declarar a “guerra ao globalismo”. Este ano, Mike Pompeo renovou a mensagem: a disrupção da velha ordem global é “uma coisa boa”, porque “as nações importam, nenhuma instituição internacional pode defender as pessoas como uma nação”. Macron ficou em casa por causa dos gilets jaunes. May por causa do “Brexit”. Merkel foi a Davos para defender as boas causas, entre as quais o multilateralismo, que é o que a chanceler faz melhor.

5. O problema é que o seu discurso foi precedido por uma tristíssima cimeira franco-alemã, realizada na cidade fronteiriça que hoje se chama Aachen e já se chamou Aix-la-Chapelle, que andou para cá e para lá nas guerras entre a França e a Alemanha. Desta vez, a chanceler e o Presidente francês resolveram celebrar o 56.º aniversário do Tratado do Eliseu de 1963 com a assinatura de um novo tratado para exprimir a natureza indissolúvel da aliança que é a pedra angular da integração europeia e prometer mais empenho no futuro da Europa. Habituámo-nos a apreciar os actos simbólicos, como este, que nos lembram as guerras suicidas em que a Europa quase se autodestruiu e os mais de 60 anos de paz e de prosperidade, graças a essa ideia genial de criarem uma comunidade europeia. Quando deixam de ter conteúdo, acabam por tornar-se contraproducentes. As 16 páginas do novo Tratado de Aachen já nem tentam disfarçar o vazio. Citando Judy Dampsey, do Carnegie Europe, foi quase preciso recorrer à cooperação nas regiões fronteiriças dos dois países – “melhorar a vida dos cidadãos nas regiões de (...) com projectos transfronteiriços como creches, escolas, serviços de saúde e parques industriais” –, ou à promessa de mais consultas mútuas, quando ambos não fazem mais nada, por exemplo, antes de cada cimeira europeia, para dar algum conteúdo ao documento. Daqui a 50 anos ninguém se lembrará dele, ao contrário do Tratado do Eliseu, assinado entre De Gaulle e Adenauer em tempos muito mais difíceis, diz o académico alemão Henrik Enderlein. Merkel e Macron vão tentando pôr o motor europeu a trabalhar. Vai-se sistematicamente abaixo. O motor custa a pegar. 

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