A fábrica da Triumph é passado. “Vamos embora à luta”

Fernanda há-de se tornar modista. Mónica quer chegar à universidade. Sandra vai conquistar o lugar na multinacional. Lurdes continuará no restaurante. Dora ainda vai ganhar um carro no Preço Certo. E Amália vai lançar um livro de poemas sobre a Triumph. A fábrica fechou de vez há um ano e para trás ficaram décadas de muitas vidas. E muita mágoa. Ainda assim, “há males que vêm por bem”, dizem as antigas trabalhadoras.

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Primeiro foi a angústia, depois "uma certa revolta", até que lentamente "se fez luz". Foi o que disse Fernanda debruçada sobre o computador e o livro de inglês que tem em cima da mesa da sala. É que a informática e o inglês, assume, são as duas áreas que ainda lhe dão mais dores de cabeça no curso de modelismo que anda a tirar na Modatex, em Lisboa. "Não consigo dizer o 33 nem por nada", ri-se.

Depois de 30 anos a costurar lingerie da Triumph, por detrás das máquinas, para lá das dores nos olhos e nas mãos, houve um mundo novo que Fernanda Craveiro descobriu. Hoje, está a estudar porque quer aprender mais para criar um projecto só dela. 

Dificilmente aqueles 20 dias de protesto de há um ano se vão apagar da memória. Da dela e das colegas que permaneceram aos portões da fábrica de onde não arredaram pé, nem de dia nem de noite, protegendo todas as máquinas que estavam no seu interior e que seriam o garante dos salários e das indemnizações a que teriam direito com o fecho da histórica fábrica de Sacavém. Foram elas que na tarde do dia 5 de Janeiro de 2018, no final do turno, disseram: “Não sai nada desta fábrica.” E não saiu.

Passou um ano, mas parece que foi há dois dias, repetem, e ainda ninguém percebeu bem como se aguentou o frio, a chuva, o cansaço, a revolta por que passaram aos portões da Triumph, onde dezenas de trabalhadoras, por turnos, iam guardando a fábrica.

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Fernanda Craveiro

Foi uma luta feita ao minuto, assim como era o trabalho delas agarradas às máquinas. Um ano depois, as máquinas em que aquelas mulheres se tinham tornado abrandaram, mas a vida delas ainda continua a ser vivida ao minuto, umas com mais incerteza, outras com menos.

Umas estão a trabalhar, outras estão desempregadas, outras esperam a reforma, outras ainda estão em cursos e formações. Cada uma ao seu ritmo, vão cosendo novas vidas. Mas para lá da “desgraça” que tudo aquilo foi, acabaram por encontrar novos rumos. E estão cheias de vontade de arriscar. 

É Fernanda que diz que no meio de toda aquela “desgraça” se abriram novos caminhos e apareceram muitas oportunidades, que antes acabavam por ficar escondidas atrás da máquina da costura.

Fernanda Craveiro nunca pensara ver-se aos 52 anos no desemprego e a ter de arrumar algures na memória três décadas de Triumph. Mas hoje sente-se como uma “garota” a aprender tudo outra vez. Aprende ao lado "de miúdos de 20 e de 30 anos", que a falar inglês e nos computadores são “uma maravilha”, mas nas disciplinas mais práticas não batem os mais velhos. Quer concluir o 9.º ano para depois fazer o 12.º. E lançar-se a um projecto que é "um bocadinho ambicioso" e que, para já, não quer revelar. "Há-de ser para criar qualquer coisa em prol dos outros”, diz.

“O que é que eu vou fazer?”

Quando a administradora de insolvência chegou, a 24 de Janeiro de 2018, e lhes entregou os papéis da insolvência, do fim da empresa, os números que todas tinham morreram. “Era o óbito, era a palavra que lá estava escrita. Essa palavra chocou-me. O óbito da empresa”, havia de dizer Lurdes Silva com a voz embargada e os olhos rasos de água, em Março, quando a UMAR organizou um jantar de homenagem para aquelas mulheres em Lisboa. 

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Lurdes Silva

O que se seguiu ao fecho definitivo da fábrica foram dias atribulados. Era preciso ir à empresa, tratar de toda a papelada. Havia muitas mais perguntas do que respostas. Afinal, para grande parte daquelas mulheres o emprego na Triumph tinha sido o único da vida, poucas tinham passado pelo desemprego.

Aos 49 anos, Lurdes deixou a fábrica ao fim de 27 anos de trabalho. “Foi complicado. Foi deixar de ter uma vida estável e não saber o futuro. Foi deprimente”, recorda agora. Nunca tinha estado no desemprego, pensava que saía dali para a reforma. “Fomo-nos acomodando ao certo. Este trabalho é certo, vamos ficar aqui.” 

Tem a farda sarapintada com o trabalho de confecção dos almoços no restaurante Cantinho d’Adanaia — “onde vão jogadores do Benfica” — onde trabalha desde Setembro. Foi uma adaptação: “Era totalmente diferente do que eu fazia, mas as nossas idades não nos permitiam muita escolha. Então foi agarrar, ir à luta”.

Nos primeiros tempos, sentia falta da rotina. Lurdes diz que se dedicou à cama, que se queria “afastar da vida”. “Foi sermos atraiçoados, sentirmo-nos um lixo. Trataram-nos abaixo de cão.” Sobretudo porque sente que ela, como as colegas, “davam tudo”. “Houve alturas de entrar às 7h, sair de casa às 5h20 para chegar a horas e voltar a casa às sete da noite. Foi deixar a filha doente.”

Acabou por se “agarrar” às coisas boas que tinha, à família, à filha que durante aqueles dias de vigília lhe dissera "mãe, vai para a fábrica e luta". Depois foi ir à luta além daqueles portões. Foi um dia o marido entrar-lhe em casa a dizer "eu quero-te fora de casa, vai sair". Ao fim de três meses foi à procura de trabalho, de "carimbos".

“Foi duro, com 48 anos. Com uma filha prestes a entrar para a faculdade. Muitas coisas que me fizeram pensar 'o que é que eu vou fazer?’" Não queria ser sustentada pelo marido, mas sentia-se velha para o mercado de trabalho, nova para a reforma. Acabou por ir bater à porta daquele restaurante, que já conhecia como cliente.

Apareceram-lhe mais duas propostas, uma noutro restaurante, e outra numa fábrica que faz vidros de automóveis. "Eu andava à procura de qualquer coisa."
Hoje trabalha muitas horas — “as que forem necessárias” —, mas ali, diz, deixou de ser um número, o 1380, e passou a ser uma pessoa, “a Maria de Lurdes Silva”. “Há males que vêm por bem. Estou a ganhar mais, rimo-nos. É um ambiente familiar. Fiz a melhor opção na minha vida.”

“Uma tremenda sacanagem”

Olhando para trás, “a Fernanda 400” diz que nunca acreditou que depois da venda da Triumph à TGI - Têxtil Gramax Internacional, no final de 2016, a fábrica se mantivesse aberta por muito tempo. Mas também não imaginava que fosse preciso passar 20 dias aos seus portões. O certo é que a fábrica fechou, empurrando 463 trabalhadores para o desemprego. Uma semana depois era a Ricon, em Famalicão, que fechava portas e mais 700 trabalhadores entravam para as estatísticas do desemprego.

"A Triumph Internacional tinha dinheiro para indemnizar todos os trabalhadores, sair de nome limpo e continuar a vender mas não quis saber. Nós é que enriquecemos a empresa. Não fomos tratados com respeito", diz Mónica Antunes, 43 anos, a delegada sindical que comandou "as tropas" durante aqueles dias "que pareceram meses".

No momento em que decidiram começar a vigília, a palavra desistir nunca esteve no vocabulário delas, garante Mónica, que ali trabalhou 18 anos. “O que nos fizeram foi uma tremenda sacanagem. Não havia necessidade de passarmos pelo que passamos”.

Mónica Antunes foi para a Triumph em 2000. Tinha uma filha de dois anos, um horário bom, fins-de-semana, férias, um salário acima da média. "Se gostava de ser costureira? Não, mas fiz os testes e passei. Sempre pensei, 'vou ficar aqui meia dúzia de meses, meia dúzia de anos'". Só que o tempo foi passando. O sonho de ser jornalista de desporto ficou pelo caminho. Veio outro filho. "Acabei por me encostar um bocadinho". 

Depois do despedimento colectivo, abriu-se um leque enorme de possibilidades. "Passaram-se 20 anos. Agora tive a infelicidade, ou a felicidade, de ter ficado desempregada. Tenho 43 anos e acho que ainda vou a tempo de contribuir com alguma coisa e tentar com que a sociedade seja mais justa", diz. 

Hoje, Mónica quer ir para a universidade para se tornar assistente social e trabalhar com crianças e jovens em risco. "Mas não é daqueles de estar sentada numa secretária. Quero dar o meu contributo para ajudar jovens. Não há grande apoio às crianças. Eu vejo-as aqui na rua". Para já, está a terminar o ensino secundário e a fazer formações. Fez a de informática e a de inglês que adorou. E assim continuará.

“É para começar quando?”

Depois de uns meses à procura de formações na área da contabilidade, Sandra Carvalho, 41 anos, lá conseguiu uma que lhe deu entrada para um estágio na Edenred, a empresa líder no mercado de cartões refeição em Portugal, onde acabou por ficar a trabalhar. "Quando me ligaram nem pensei duas vezes. Só perguntei 'é para começar quando?'"

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Sandra Carvalho

Acabou por trocar uma máquina por outra — mais sofisticada, no departamento financeiro de uma multinacional. Começou no dia 12 de Dezembro. "Foi a minha prenda de Natal", diz. É que no ano passado, o Natal tinha tido um sabor amargo. Não houve salário nem subsídio. É isso que tenta esquecer. "Eu queria que chegasse o dia em que não tenha necessidade de falar nisso", diz Sandra. E isso acontecerá quando chegarem as indemnizações a que têm direito. Para já, além do subsídio de desemprego, que os trabalhadores começaram a receber logo em Fevereiro, chegou-lhes também o Fundo de Garantia Salarial — que tem como objectivo assegurar o pagamento das dívidas das entidades empregadoras aos seus trabalhadores, quando aquelas não as podem pagar.

"É certo, foi rápido, mas nós estávamos há três meses sem ordenado", lembra Sandra. Na casa dela, faltavam logo dois porque o marido, Ismael, também trabalhava na fábrica. Era o filho mais velho que já trabalhava e ia ajudando em casa, confidenciou Sandra, na altura, ao P2, aos portões da fábrica.

Sandra diz que também conseguiu convencer o marido que o melhor para ele era mesmo ir estudar. E assim foi. Está a fazer uma formação de electricista. "E está muito satisfeito". Também ela conseguiu, finalmente, o que queria. Largar o têxtil e lançar-se na contabilidade. Para já, tem um contrato de quatro meses. Depois disso não sabe o que acontecerá, mas espera muito continuar por lá.

A vida numa boa

No dia em que recebeu o P2 em sua casa, em Camarate, Dora Gaivota, 56 anos, ia começar um "curso de computadores". "Como eu só tenho a quarta classe eles não dão cursos. Eu queria fazer o de pastelaria, mas não posso porque era preciso o 6.º ou o 9.º ano. E quem é que tem cabeça para estudar? Eu queria ter cabeça e não tenho", reclama.

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Dora Gaivota

Trabalhou 26 anos na Triumph como costureira, mas trabalha desde os 14. Já foi chamada para alguns trabalhos. Um era para vender pacotes de tarifários de electricidade na rua. "Para enganar as pessoas, a ganhar 400 euros? Desculpe, mas não posso aceitar", disse-lhes. Também recebeu uma proposta de outra fábrica, mas o ordenado "mal chegava ao ordenado mínimo", conta. 

Neste ano, Dora tirou a carta de condução. Já foi ao Preço Certo tentar ganhar um carro. Chegou à montra final, mas escapou-lhe o carro. Há-de regressar. Vai bater palmas aos concursos, faz aulas de ginástica. "E levo assim a minha vida numa boa. Eu sou muito alegre e não consigo ir para baixo". 

Aos 61 anos, Florbela Malheiros, costureira, que nos últimos anos estava na secção de embalagem, diz que não a chamam para fazer nada. "No fundo de desemprego ganhamos muito menos", queixa-se. 

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Florbela Malheiros

Florbela foi uma das antigas trabalhadoras que estiveram a mostrar a fábrica aos interessados em comprar o edifício, que acabou por ser adquirido por um fundo espanhol por mais de 4,2 milhões de euros num segundo leilão, já que o primeiro tinha ficado deserto. É com esse dinheiro que contam para que possam receber parte da indemnização a que têm direito, mas não sabem ainda quando será. 

A conta solidária que foi aberta na altura para ajudar quem tinha os ordenados em atraso rendeu apenas 10 euros e uns cêntimos a cada uma, sendo que parte desse valor ainda foi doado aos Bombeiros Voluntários de Sacavém que ali tinham estado a dar-lhes apoio.

“Um cantinho na história”

Dificilmente a memória se livrará desses primeiros tempos que, reconhecem, não foram fáceis. A rotina alterara-se por completo. Deixaram de vestir as batas azuis, de apanhar os transportes, às vezes, ainda de madrugada. Florbela costumava apanhar o comboio em Rio de Mouro e depois saía no Areeiro, de onde partia de autocarro para a fábrica. Passava ali todos os dias às sete horas em ponto. "Às vezes o comboio atrasava um minuto ou dois e tínhamos de fazer aquele caminho todo a correr. E hoje posso ir aqui descansadinha." 

O corpo pediu cama e o fumo daquele braseiro, sempre a arder em frente à fábrica, que se entranhara, teimou em não desaparecer. 

No primeiro mês foi muito complicado, diz Dora. "Eu sonhava com aquilo". Começou a trabalhar aos 14 anos e nunca parou. No segundo mês, tudo para trás das costas. "Vamos embora à luta".

Dora diz que passa muitas vezes aos portões. "Não me afecta nada. Para mim morreu", ainda que reconheça que a fábrica também lhes deu muito a ganhar. Ficaram as memórias felizes, mas sobra ainda muita mágoa. Sandra não quer passar por lá, nem Fernanda, nem Lurdes. 

“Estas mulheres deram tanto dinheiro a ganhar, eles também nos retribuíram sempre certinhos. Ao fim de tantos anos de trabalho eles podiam não gostar de nós, mas podíamos ter feito um acordo. O que eles nos fizeram foi virar as costas. Acha que consigo olhar para uma loja da Triumph? Claro que não consigo”, enerva-se Fernanda. 

Ainda assim, Amália Leal tratou de eternizar as memórias — as boas e as más — de muitos anos de Triumph, e das pessoas que a fizeram, num livro de poemas que será lançado com o apoio da câmara de Lisboa. 

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Amália Leal

Amália tem 54 anos, 29 de costureira "com muito gosto", e escreveu a maioria desses poemas enquanto estava voltada para um pilar, um castigo que recebeu das chefias por "falar demais". "É que eu metia-me em guerras que não eram minhas", recorda. Quando se puseram aos portões da fábrica estava de baixa por causa de uma entorse. Mas foi para lá. 

Para já, está a ver se terá de ser operada às costas. "Estou a viver um dia de cada vez como já vivo há muitos anos", diz, com os olhos cheios de lágrimas. Faltam-lhe as colegas, mas há sempre para um almoço ou um cafezinho com as colegas.

Mónica ainda guarda as escalas que fizeram para a vigia em casa. Recorda a solidariedade, mas o que lhe vai ficar mesmo na memória é a sopa que fizeram quando o refeitório deixou de servir as refeições. Fizeram uma sopa com legumes e feijão em dois grandes panelões. "Até hoje foi a melhor sopa que eu comi", diz. Mas não esquece a "fila enorme de mulheres de tigelinha na mão". É a pior memória que tem. A das colegas em fila, de tigela nas mãos e lágrimas nos olhos. "Século XXI, às portas de uma cidade e estamos aqui de tigelinha na mão?"

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Mónica Antunes

Depois da administradora de insolvência ter chegado, da vigília ter terminado, o burburinho não parou logo. Mónica foi fazer palestras à Universidade Nova de Lisboa e à Casa dos Bicos para contar que luta tinha sido aquela, protagonizada pelas mulheres da fábrica, mas sempre com o apoio dos filhos, dos maridos, dos colegas que também ali permaneceram.

Depois, tudo foi tomando o devido lugar. Foram-se acomodando a uma nova rotina, o subsídio de desemprego começou a aparecer, foram-se fazendo novos planos, traçando novos objectivos. Naquela empresa, acredita Mónica, havia pessoas com habilidade para fazer "mil e um tipo de coisas e perderam-se por ali". No meio da desgraça, esta foi uma oportunidade para se libertarem das máquinas de costura. "Eu vou arriscar. Se vou conseguir ou não, não sei, mas vou arriscar."

"Nós, trabalhadoras da Triumph, vamos ter um cantinho na história deste país. Não é uma página inteira, mas a gente está lá. No nosso país as mulheres não têm esse poder", acredita Mónica. É também por isso que lhes sobra uma certeza: se fosse preciso, aquelas mulheres não tinham problemas em fazer tudo outra vez. 

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