De Lisboa a Macau - e não é preciso sair de Alcântara

O discreto Museu de Macau é o palco de uma visita com um romance histórico como guia. Oportunidade para (re)descobrir uma relação com cinco séculos.

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Guerreiros de terracota recebem o visitante do Museu de Macau daniel rocha

Numa casa pintada de branco da Rua da Junqueira há uns néons azuis, verdes e vermelhos que anunciam um dos mais desconhecidos locais de Lisboa: o Museu de Macau, aberto ao público há 24 anos e ponto de paragem para compreender parte da presença portuguesa no Extremo Oriente.

O túnel que separa a rua do museu é curto, mas funciona como um avião instantâneo. Do outro lado, no jardim com árvores baixas e água jorrante, já não é Lisboa. A primeira coisa que Andreia Salvado pede é isso mesmo. “Vamos desligar-nos de 2019 e viajar até ao século XVI”, diz esta professora transformada em cicerone da cidade. Andreia não é propriamente da casa, mas a sua investigação académica e o romance O Samurai Negro, de João Paulo Oliveira e Costa, levaram-na a pensar para este espaço a visita guiada “Os Descobrimentos na Ásia”.

“A presença que nós tivemos na Ásia ainda é um bocadinho esquecida”, afirma. E isto é estranho, aponta Andreia, se tivermos em conta que foi há escassos 20 anos que Portugal devolveu à China a gestão de Macau, território onde esteve quase meio milénio. Este museu é para que “os portugueses que não tenham oportunidade de ir lá consigam perceber o que foi”.

A porcelana chinesa foi-se tornando mais elaborada, à medida das encomendas europeias Daniel Rocha
Réplica da nau que fazia a ligação entre Goa e Nagasáqui Daniel Rocha
O interesse pelo Extremo Oriente na Europa "era monumental" Daniel Rocha
Exemplos da porcelana que começou a chegar em Lisboa a partir do século XVI Daniel Rocha
Um globo que mostra a zona em que os portugueses operavam comercialmente Daniel Rocha
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A porcelana chinesa foi-se tornando mais elaborada, à medida das encomendas europeias Daniel Rocha

E o que foi, afinal? Uma profícua relação comercial e cultural, que até nem começou da melhor forma. “D. Manuel I tinha uma visão extremamente inovadora e deu ordens aos navegadores que estavam na Índia para continuarem para mais além, até ao sudoeste asiático”, conta Andreia. Depois de a armada de Vasco da Gama chegar à Índia, em 1498, os portugueses lançam-se pelo Índico e, em 1511, assenhoram-se de Malaca.

E daí prosseguem. “O primeiro contacto com mercadores chineses é em Malaca. Em 1513, a primeira comitiva portuguesa é aceite a bordo de um junco”, explica Andreia, referindo-se ao barco chinês de que o Museu de Macau tem uma réplica. A partir de Malaca, os navegadores e mercadores vão reunindo informações, cartografando o território e tirando notas marítimas. Publica-se então na Europa, cujo interesse por aquela parte do mundo “era monumental”, a Suma Oriental, de Tomé Pires, que liderou a primeira embaixada à China, entre 1517 e 1522.

É nesse ano que as coisas parecem descarrilar. “Os portugueses são expulsos da China e é curioso ver o que diziam os chineses: que bebiam muito, tinham comportamentos imorais em público, comiam com as mãos, não tomavam banho e não se descalçavam quando entravam em casa”, diz Andreia. “Apesar do édito de expulsão, os mercadores privados continuaram as suas ligações”, explica. Pouco tempo depois, as peças do xadrez movimentam-se novamente. “Em 1530, a China corta relações com o Japão, está em guerra com a Mongólia e o litoral está constantemente a ser atacado. Os chineses rapidamente percebem que os portugueses podem ser úteis.”

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O biombo que ilustra a chegada dos portugueses ao Japão Daniel Rocha

Macau entra em cena. A pequena aldeia de pescadores torna-se o sítio ideal para a instalação de um entreposto comercial, através do qual Portugal fornecia à China espingardas, canhões, mandioca, papaia, amendoim, batata, ananás. Com a chegada portuguesa ao Japão, depois de 1543, passa a existir uma carreira regular entre Goa e Nagasáqui, com paragens em Malaca e Macau. No museu da Junqueira há uma réplica da nau, com animações em vídeo, os potes de grés que serviam para transportar água potável, um oratório católico que seguia a bordo.

Há também, numa sala mais pequena, a evocação do Colégio de São Paulo, de jesuítas, onde foi produzido o primeiro dicionário português-mandarim e com um importante acervo de objectos litúrgicos em prata. Mais adiante, um biombo japonês retrata, de uma forma que hoje nos parece bem-humorada, o desembarque português em Nagasáqui. E, no andar de cima, uma amostra dos “quilos e quilos de porcelana” trazida para Lisboa, segundo Andreia Salvado.

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Andreia Salvado junto às réplicas de um junco (esquerda) e de uma nau portuguesa Daniel Rocha

Mais ou menos de dois em dois meses, Andreia faz esta visita guiada. A próxima decorre no fim de Fevereiro. “É um hobbie, algo que me dá uma enorme paixão”, relata a fundadora das Oui Go Lisbon Visits, que tem outros percursos pela cidade, sempre inspirados em obras literárias. “Nunca me passou pela cabeça que os portugueses se interessassem por estas visitas. Mas tem sido um sucesso e funciona muito pelo passa-palavra”, diz.

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