Taxa de reconhecimento de refugiados varia entre 12% e 89% na Europa

Propostas de Bruxelas para harmonizar procedimentos e criar uma Agência Europeia do Asilo continuam sem luz verde. Assimetrias no reconhecimento dos refugiados são um dos aspectos "mais condenáveis", diz o eurodeputado do PSD Carlos Coelho.

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Julho de 2017: migrantes à porta de La Chapelle, norte de Pat«ris Reuters/PASCAL ROSSIGNOL

Apresentar um pedido de asilo não parece oferecer as mesmas probabilidades de sucesso em todos os países da Europa. Apesar de o direito à protecção internacional estar consagrada na Convenção de Genebra, de que todos os Estados-membros da União Europeia são signatários, a decisão de atribuir ou não o estatuto de refugiado é uma responsabilidade nacional e não europeia. E se os critérios legais para a concessão deste estatuto são comuns, na prática, verificam-se grandes disparidades na Europa nas taxas de reconhecimento – ou seja, na percentagem de respostas positivas face ao número total de decisões em cada instância do procedimento. 

A média europeia em termos de decisões positivas em primeira instância foi de 46% em 2017, segundo o Eurostat, mas variava entre os 12% da República Checa e os 89% da Irlanda. Com taxas de reconhecimento abaixo dos 35% estão países como a França, a Croácia, a Polónia, a Hungria, a Dinamarca e o Reino Unido. No topo da tabela estão, para além da Irlanda, países como a Letónia (74%), a Lituânia (78%), Malta (69%) e Eslováquia (68%). As estatísticas parciais relativas ao terceiro semestre de 2018 apontam para uma redução da média europeia, mas mantendo-se as discrepâncias entre países.

Para o eurodeputado do PSD Carlos Coelho, as assimetrias no reconhecimento de refugiados são um dos aspectos “mais condenáveis” da escassa harmonização europeia em matéria de asilo. “Não é verosímil que os verdadeiros asilados vão todos para um país e que os falsos vão todos para outro”, analisa o eurodeputado Carlos Coelho, eleito pelo PSD. “É evidente que há países que estão a ser mais generosos e países que estão a ser menos generosos”.

Portugal está ligeiramente em cima da média europeia com uma taxa de reconhecimento de 52%. Esta taxa inclui não apenas refugiados (sujeitos a perseguição) mas também beneficiários de protecção subsidiária se se considera correrem risco de sofrer ofensas graves se regressarem ao país de origem.

O último relatório do gabinete europeu de apoio em matéria de asilo, concluído em Junho último, admite que as variações na taxa de reconhecimento podem sugerir “falta da harmonização na tomada de decisão”, nomeadamente devido a uma diferente avaliação da situação do país de origem do requerente ou a uma interpretação legal distinta de alguns conceitos. “Um pedido de asilo de um país muçulmano pode ser considerado na Itália com um grau de perigosidade que não é reconhecido na Suécia”, exemplifica Carlos Coelho.

“Em alguns países da Europa de Leste estes processos estão a ser despachados mais rapidamente, porque a recusa é mais rápida do que é normal”, observa também Pedro Góis, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, especialista em migrações. No entanto, o investigador considera que, nos casos de apresentação voluntária do pedido, não existem “grandes diferenças” entre países europeus, apenas metodologias processuais mais ou menos rápidas. “Com pequenas mudanças, não na lei, mas nas regulamentações internas ou na estrutura de acolhimento, os processos podem, de facto, ficar bastante mais lentos”, ilustra.

Há também pessoas que, podendo ser elegíveis ao estatuto, não conseguem sequer colocar o pedido, porque, para isso, têm de aceder ao território onde pretendem ser asilados. É o que tem sucedido com os migrantes resgatados por navios humanitários que viram a sua entrada negada em diversos portos europeus. Segundo o relatório do gabinete europeu, foram também reportados pela sociedade civil, em 2017, diversos outros casos de recusa de acesso ao território em países como Grécia, Espanha e França, mas também no leste europeu, designadamente na Bulgária, Croácia, Roménia e Polónia. 

A concentração dos pedidos em alguns países pode ajudar a justificar algumas discrepâncias. “Houve muita procura em alguns países e muito pouca procura noutros”, observa Pedro Góis. Se alguns países tomaram decisões quanto a pedidos de asilo na ordem das centenas, outros analisaram dezenas de milhares. Por exemplo, a Alemanha decidiu mais de 500 mil casos em primeira instância em 2017, ficando a uma enorme distância do segundo país com maior volume de decisões – a França – que deu resposta a mais de 110 mil pedidos. No mesmo período, países como a Estónia ou a Eslováquia deram resposta a menos de 200 requerimentos.

Por outro lado, é preciso ter em conta que existe uma correlação entre a origem de alguns requerentes de asilo e determinados países de destino, nomeadamente quando existe uma língua comum ou comunidades já instaladas nesse país. Por exemplo, apesar da tendência geral de forte quebra no número de pedidos de asilo entre 2016 e 2017 (caiu 44%), o número de requerentes com origem na Venezuela registou, nesse ano, o maior aumento relativo e absoluto e a maioria destes pedidos concentrou-se em Espanha. 

De resto, a taxa de reconhecimento também varia de forma significativa consoante o país de origem – em 2017, há 5% de decisões positivas para requerentes da Albânia e 94% de pedidos aceites de pessoas oriundas da Síria – o que também pode explicar alguma disparidade. Depois, mesmo entre requerentes do mesmo país de origem, pode haver razões distintas para estes acederem ou não ao estatuto (porque pertencem a uma minoria étnica em risco ou são menores não acompanhados, por exemplo).

Ainda assim, uma maior harmonização da aplicação da lei no território da União Europeia seria benéfica. Para Pedro Góis, a definição de áreas seguras – que implica que um requerente de asilo possa, desde logo, ver o seu pedido recusado – deve estar sujeita “a regras muito explícitas” e ter uma aplicação “uniforme” na União Europeia. Além disso, o mecanismo de prova é diferente consoante o país de origem de cada indivíduo, mas tampouco existe uma harmonização europeia nesta matéria. “A regra tem de ser acolhermos todas as pessoas nas mesmas circunstâncias do mesmo modo”, defende.

Por outro lado, o especialista considera que devia haver maior transparência no acompanhamento destes processos, nomeadamente em segunda instância. “Temos de conseguir acompanhar esses processos, não apenas na primeira instância, em que há uma decisão administrativa, mas o que acontece após o recurso desses indivíduos e a forma como os tribunais decidem sobre estes casos”. “Temos muito pouca informação”, alerta.

Bruxelas quer harmonizar regras  

A falta de harmonização na política europeia de asilo que se verifica em todas as fases do processo – antes da chegada à Europa e após o reconhecimento do estatuto – também tem um custo. Segundo um relatório encomendado pelo Parlamento Europeu, o custo anual de manter o statu quo ascende a 49 mil milhões por ano, e justifica-se, por exemplo, pelos encargos incorridos pelos Estados-membros no controlo da imigração ilegal, pelos custos associados à ineficiência dos processos, mas também pela perda de receita fiscal quando a integração no mercado de trabalho dos refugiados não se verifica.   

Bruxelas propôs, ainda em 2016, um regulamento de harmonização de procedimentos a nível europeu, no âmbito do pacote legislativo para o asilo, tendo em vista reduzir as diferenças nas taxas de reconhecimento e desencorajar movimentos secundários, mas este diploma está ainda – a par da revisão do regulamento de Dublin que consagra a recolocação de refugiados – longe de reunir consenso entre Estados-membros.

O pacote legislativo do asilo prevê, ao todo, a revisão de sete instrumentos legislativos, incluindo para além destes diplomas, a revisão dos regulamentos de qualificações (que harmoniza standards de protecção), do Eurodac (que reforça a base de dados de identificação de migrantes) e de reinstalação (relativo à redistribuição na UE de refugiados já reconhecidos como tal em países terceiros), assim como a criação de uma Agência Europeia do Asilo. São propostas ainda alterações à Directiva de Acolhimento que visam assegurar condições equivalentes de país para país – prevê-se, por exemplo, que o acesso ao mercado de trabalho seja garantido no prazo de seis meses após o registo – mas também impor obrigações de reporte aos refugiados para evitar migrações secundárias. 

Para a maioria destes instrumentos, existem já negociações fechadas ou muito avançadas entre o Parlamento Europeu e o Conselho, mas ainda não existe luz verde quanto a um acordo final, adiantou o eurodeputado Carlos Coelho. O bloqueio subsiste porque alguns países continuam a privilegiar uma abordagem de pacote e questões como a recolocação têm-se revelado impossíveis de consensualizar.

Agência Europeia precisa-se

A criação de uma Agência Europeia de Asilo é uma das propostas que colhe maior apoio entre os países da União Europeia. Actualmente, já existe um gabinete europeu de apoio em matéria de asilo, mas com a criação desta agência, seria possível a afectação de meios técnicos próprios (que hoje são emprestados pelos Estados-membros) e “um alargamento significativo” dos seus recursos humanos, adianta Carlos Coelho. A proposta prevê, por exemplo, a criação de uma pool de emergência constituída por quadros técnicos dos países da UE que poderiam ser destacados em caso de necessidade.

Para Pedro Góis, haver uma agência “que centralize parte do processo” pode ser uma solução para assegurar maior “concertação” entre países europeus, quando a harmonização se afigura inviável. “A harmonização nesta altura parece-me um pouco difícil”, admite.

Mas, também aqui, há reticências de alguns Estados-membros, nomeadamente quanto à possibilidade desta agência vir a fazer uma monitorização permanente dos sistemas de asilo, verificando, em cada país europeu, se as leis estão ou a não a ser respeitadas. Isso permitiria exercer “uma pressão sobre os Estados-membros de forma a garantir que a legislação europeia é aplicada uniformemente em todo o território da União”, observa Carlos Coelho. Até porque, ainda que houvesse uma harmonização de procedimentos e requisitos, “a sua interpretação ainda permite algum jogo de cintura”, observa o eurodeputado. Já com o acompanhamento permanente de uma agência europeia haveria “menos arbitrariedade”. “É por isso que há vários países no Conselho que não gostam desta ideia”, frisa.

Um dos objetivos da reforma do Sistema Europeu Comum de Asilo é, de resto, evitar o chamado “asylum shopping”, ou seja, que, pelo facto de existindo grandes assimetrias entre Estados-membros nas taxas de reconhecimento e nas condições de acolhimento, os próprios requerentes de asilo concentrem os seus pedidos em meia dúzia de países.

Em 2017, a grande maioria das 538 mil pessoas a quem foi reconhecida protecção internacional na União Europeia – mais de 80% – está concentrada em cinco países, incluindo Alemanha, França, Itália, Áustria e Suécia. Só a Alemanha é responsável por mais de 60% das decisões positivas.

Por outro lado, se em teoria pode ser muito claro distinguir um refugiado de um migrante económico, “na prática, é muito complicado separarmos as pessoas”, observa João Peixoto, investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. “A prova de que isto é assim é que muitos candidatos a refugiados que solicitam o estatuto não o recebem”. Ao todo, em 2017, foram tomadas mais de 1,2 milhões de decisões em primeira e segunda instância (após recurso judicial), o que significa que apenas metade dos pedidos receberam resposta positiva. Alguns países, reconhecendo, ainda assim, a necessidade de proteger essas pessoas, concederam vistos humanitários, que se baseiam em legislação nacional e não europeia. Foram atribuídos 77500 vistos em 2017.

“Há que voltar um pouco ao estatuto de refugiado como algo excepcional e não como uma alternativa à migração económica”, observa também Pedro Góis. E, para isso, defende, “é preciso abrir canais de migração económica para que os potenciais migrantes possam fazer esse caminho de uma forma mais atractiva e menos perigosa”.

Mas se “receber um migrante é uma escolha”, complementa João Peixoto, “receber refugiados é uma obrigação”. “Se houvesse aqui um conflito e as pessoas tivessem de sair do nosso país, gostariam de ser recebidas noutro sítio. É por isso que há uma lei que os protege”, recorda.

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