A Venezuela, antes que seja tarde

Estamos a contra-relógio esgotando o pouco tempo que separa um povo de trinta milhões de habitantes de uma repressão terrível ou de um conflito generalizado.

Em certo sentido, Hugo Chávez foi precursor do nacional-populismo contemporâneo na sua versão latino-americana, como Orbán o foi na sua versão euro-norte-americana. De comum tiveram o ataque à oposição como traidora à pátria, a politização da justiça e o aproveitar de um bom momento económico (petróleo num caso, fundos europeus no outro) para financiar correligionários e manter a popularidade. De diferente teve Chávez a tradição caudilhista, que o levou a apresentar-se de farda e rodeado de militares, e o facto de desgraçadamente se apresentar como sendo de esquerda — o que lhe garantiu o apoio do anti-Americanismo primário e a solidariedade irrefletida dos partidos congéneres na sua região (na verdade, Bolsonaro já fez mais em três semanas para tornar o Brasil “numa Venezuela” do que o PT de Lula em três mandatos presidenciais).

De comum tinham ainda Chávez e Orbán uma coisa: ganhavam eleições. Nicolás Maduro nem por isso. Tendo perdido eleitoralmente o controle sobre a Assembleia Nacional Popular que tomou posse em 2016, a solução que encontrou foi criar por decreto uma Assembleia Nacional Constituinte cuja seleção em 2017 controlou completamente e cujos 545 deputados (aos dias de hoje) são todos seus apoiantes. Por sua vez essa assembleia convocou eleições presidenciais em que a oposição não participou por considerar ilegítimas e que Maduro venceu num escrutínio marcado por irregularidades que não foi reconhecido pela ONU ou por organizações regionais como a Organização de Estados Americanos (que a Venezuela abandonou por instruções de Maduro) ou a UE.

Chegamos assim a uma perigosíssima situação em que a Venezuela tem dois parlamentos que não reconhecem mutuamente a respectiva legitimidade e, a partir desta semana, dois presidentes (Nicolás Maduro e Juan Guaidó) na mesma situação.

Não é de hoje que me oponho à deriva autoritária na Venezuela, é de sempre. Descrevi Chávez nestas páginas como demagogo, autoritário e populista ainda antes de aqui ser colunista regular, e no Parlamento Europeu aprovei e fui autor de resoluções condenando a violação de direitos humanos naquele país. Para a Venezuela como para qualquer outro país no mundo, acho que a solidariedade da esquerda vai muito mal dirigida se for balizada por critérios de proximidade política ou do habitual anti-imperialismo seletivo, já para não falar de quem acha que os direitos e liberdades cívicas são “superstições burguesas”, como disseram os bolcheviques a Emma Goldman. O meu desejo é que o regime de Maduro reconheça que é do interesse do povo venezuelano que se preparem eleições livres e justas que permitam reencontrar um caminho democrático para o país, com garantias de respeito pelo estado de direito e os direitos humanos, ganhe quem ganhar.

O que não é certamente do interesse do povo venezuelano é que se chegue a uma situação semelhante à da Síria, com potências internacionais apoiando um enfrentamento violento entre governo e oposição. E, no entanto, é isso que está em risco de suceder. De um lado, a maioria dos governos americanos, predominantemente de direita, já reconheceu como presidente Juan Guaidó — com Bolsonaro e Trump à cabeça. Do outro lado a Rússia e a China mantêm a confiança em Maduro. Isto não pode acabar bem.

As linhas para evitar um possível conflito não andam muito longe da posição da União Europeia: reconhecer a legitimidade da Assembleia Nacional Popular, última instituição a ser eleita na Venezuela com leis aceites por todos (as já redigidas pelo regime de Chávez e Maduro, aliás), mas não reconhecer Juan Guaidó como presidente da Venezuela, antes propondo como caminho a realização de novas eleições, e oferecendo assistência para tal.

Habitualmente não faltam ocasiões para lamentarmos a falta de uma diplomacia europeia, paralisada que costuma estar pela regra da unanimidade no Conselho da UE. Mas num mundo de demagogos e aventureiros, há que reconhecer que pelo menos nesta ocasião o equilíbrio a que a UE chegou (e para o qual Espanha e Portugal contam bastante) parece ser o correto. Não esqueçamos que a UE conta neste momento com cinco membros entre os quinze do Conselho de Segurança da ONU. Altura para os pôr a trabalhar com António Guterres para um entendimento a que EUA, Rússia e China não conseguem — ou não querem — chegar. Depois pode ser tarde demais.

Da mesma forma que a diplomacia da cobardia não serve ao povo da Venezuela, também o oportunismo dos políticos incendiários lhe serve ainda menos. Que Assunção Cristas, para dar nas vistas, apele ao governo português para que quebre com os seus parceiros europeus, e faça dos portugueses na Venezuela um alvo, reconhecendo desde já Guaidó como presidente, é apenas mais um exemplo típico daquela direita que se habituou a dizer “e então a Venezuela?” sem demonstrar qualquer preocupação pelo destino dos venezuelanos propriamente ditos. Para espelho da esquerda que apoiou ou ainda apoia Maduro, está muito bem. Mas agora já não estamos na altura do “e então a Venezuela”. Estamos a contra-relógio esgotando o pouco tempo que separa um povo de trinta milhões de habitantes de uma repressão terrível ou de um conflito generalizado.

Ajudemos o povo venezuelano a encontrar um caminho seguro para o regresso à democracia e a estabilidade, deixando claro a Maduro que a única saída honrosa do isolamento é através de eleições livres e justas. Se ele está tão convencido de contar com apoio popular, não terá dificuldade em ganhá-las. Se as perder, só a si mesmo e ao seu governo pode culpar.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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