A angústia da época. Mas de que época, se também é a nossa?

Em Trânsito adapta uma história passada em Marselha nos anos 40. Mas as ruas são as da Marselha contemporânea, os automóveis são contemporâneos, os uniformes da polícia de choque são os mesmos que vemos na televisão. É essa a aposta: eliminar a distância de segurança do espectador para com os acontecimentos.

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O romantismo acossado de uma narrativa sobre gente perdida entre o instinto de auto-preservação e o poder redentor, mas sacrificial, do altruísmo e do amor
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A mais singular aposta de Em Trânsito tem a ver com o tratamento da cronologia. Se a história (extraída ao romance homónimo de Anna Seghers) trata da situação dos refugiados que em Marselha, em 1940, perante uma Europa cada vez mais ocupada pela bota nazi, aguardavam um barco que os levasse para outras paragens transatlânticas, Petzold evita todas as saliências convencionais da “reconstituição” de época. As ruas são as da Marselha contemporânea (e sobretudo da zona “gentrificada” das antigas áreas portuárias), os automóveis são contemporâneos, os uniformes da polícia de choque são exactamente os mesmos que vemos na televisão, por exemplo em reportagens sobre as manifestações dos “coletes amarelos”.

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O efeito desta opção tem incidências narrativas, ou na maneira como o espectador responde à narrativa: eliminado o “cordão sanitário” da identificação histórica precisa e dos códigos do “filme de época”, elimina-se também a distância de segurança do espectador para com os acontecimentos. E assim, paradoxalmente, talvez este seja, entre a produção do “cinema da II Guerra” dos últimos anos, aquele em que sente melhor a angústia do avanço dos invasores, a sensação de cerco. Em vez do cenário da época, a angústia da época. Mas de que época, se também é a nossa? E isso duplica a angústia.

Porque se traça muito eficazmente, por exemplo, a oposição entre a “normalidade” (o bulício das ruas, os rostos dos transeuntes) daqueles que não têm nada de radical a perder com a chegada dos invasores e decorrentes “purificações” (terminologia do filme) e a absoluta excepcionalidade da situação dos refugiados, para quem a obtenção dum visto significa a diferença entre a vida e a morte. Boa parte de Em Transito passa-se assim, numa clandestinidade a céu aberto, com o mar em frente e toda a claridade do verão mediterrânico, mas em permanente “diálogo” com um espaço quase críptico: carruagens de comboios, corredores e apartamentos (Petzold filma muitas portas, em prenúncio de uma citação de Kafka que virá lá para o final), salas de espera de consulados, um pequeno restaurante onde todos se encontram e é quase o Rick’s Café desta história (e onde também, a dada altura, finalmente perceberemos a quem pertence a voz off que conduz e comenta a narrativa, aliás num evidente traço de film noir, género a que Petzold gosta sempre de aludir enquanto elemento “estruturante”).

Vemos também, e muito claramente, o “nosso tempo”, através da história entre o protagonista, o miúdo magrebino e a sua mãe, e sobretudo na última visita de Georg (o protagonista) ao apartamento, os olhares que o fitam (e à câmara, portanto, aos espectadores) são olhares de “agora”. E vemos, entre o principal trio de personagens (uma mulher e dois homens), o romantismo acossado de uma narrativa sobre gente perdida entre o instinto de auto-preservação e o poder redentor, mas sacrificial, do altruísmo e do amor (há nisto, também, qualquer coisa de “languiano”). É por isso que, num golpe de génio, Petzold elide o contracampo para o derradeiro olhar de Georg — ficando um plano “em falta”, nunca saberemos quem veio por ele, se a vida, se a morte. Passamos para o genérico final e para o Road to Nowhere dos Talking Heads, a transformar David Byrne em profeta dos nossos tempos.

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