A vida nas filas de trás

Eles crescem, estes jovens, fazem-se adultos: sem qualificações, sem aptidões e, na maior parte dos casos, sem aspirações...

Relembro o filme Entre les Murs (em português, A Turma), realizado por Laurent Cantet com base no livro homónimo de François Bégaudeau, e que, tendo mais de dez anos, se afigura de crescente actualidade, numa Europa cada vez mais heterogénea, desigual e indiferente. É um filme cru, este, como crua é a vida daqueles que retrata.

Como crua é, afinal, a vida nos tantos bairros sociais dos subúrbios de Paris, de Londres, de Bruxelas, mas também de Lisboa, do Porto, de Setúbal... Os bairros onde se reproduz esse tipo de exclusão de que não interessa falar (uma exclusão que, ainda assim, mais vale traduzir em pobreza, porque essa sempre é quantificável e até tem respostas e programas vários, a ela destinados).

Uma exclusão profunda, herdada, que se inscreve na pele, como as tatuagens de muitos dos jovens que se deixam vagar pelas ruas, cinzentas sempre, ainda que coloridas, porque cinzentos são os sonhos e as vidas dos que nelas habitam.

Uma exclusão que, sendo feita de desesperança e de desenraizamento, está muito para além da etnia, da religião ou da nacionalidade. E que, em definitivo, está muito para além da pobreza ou da carência alimentar.

Uma exclusão que não se combate alargando a escolaridade (e, novamente, as estatísticas) ou promovendo uma gratuidade (supostamente igualitária e de perversa iniquidade) de manuais escolares, recheados de referências culturais, históricas e até linguísticas, que são totalmente estranhas a estes jovens.

É por isso, por esta estranheza, que eles vão compor esse típico grupo dos alunos da “fila de trás”, com quem o sistema educativo estabelece uma espécie de acordo tácito: o sistema não os incomodará e eles não incomodarão o sistema, o que significa que não perturbarão, demasiado pelo menos, os outros, isto é, o aluno médio, de recursos médios e acesso médio, às tais referências que compõem os curricula, os programas ou os manuais escolares.

E até parece resultar, este acordo tácito, pelo menos se exceptuarmos duas ou três suspensões, totalmente ineficazes se o seu objectivo for o da mudança de comportamentos e atitudes, e de efeito claramente contrário, se esse mesmo objectivo for o da punição.

Mas eles crescem, estes jovens, fazem-se adultos: sem qualificações, sem aptidões e, na maior parte dos casos, sem aspirações...

Ou sim, com aspirações a telemóveis e televisores de última geração, facto que desencadeia a indignação da “outra sociedade” (maioritária e composta pelos tais que foram, em tempos, os alunos médios) que, diligentemente, se agiganta na crítica, apontando o dedo à “inconsciência”, ou à “dependência” ou à “preguiça”... Acontece que estes telemóveis, estes televisores ou estes tablets têm uma forte dimensão simbólica: eles representam, de facto, uma janela do mundo e para o mundo e, por isso, contribuem para atenuar a percepção de invisibilidade, partilhada por estes grupos que, socialmente, estão na margem.

Claro que, para quem nada tem, pouco há a perder, e se já se está na margem, por que não assumir o rótulo e comportar-se em conformidade? Afinal, foi o sistema quem parece ter rompido a sua parte do acordo e, agora, já não há fila de trás onde eles se possam barricar, porque toda a sua vida é uma imensa fila de trás.

Perturbado, o sistema responde com a salvífica fórmula da reinserção social, conceito nobre e bonito, sem sombra de dúvida, mas que esquece uma regra básica da gramática: a utilização do prefixo “re” é designativa de repetição, retroacção ou reforço. E, sendo assim, como reinserir o que nunca esteve inserido?

Sugerir correcção
Comentar