Já chegámos aos banlieues de Paris?

É essencial conhecer essas populações para sobre elas intervir.

Os recentes acontecimentos envolvendo um bairro na periferia de Lisboa e uma suposta reacção de parte da sua população contra a PSP, a que se vem juntando um clamor contra a violência policial, merecem-me alguns comentários.

O primeiro vai no sentido de se rejeitarem explicações simplistas: claro que não estamos perante uma onda generalizada de vandalismo, de racismo ou xenofobia ou, por outro lado, a polícia não desatou a não saber a sua função num Estado de Direito. Supostas verificações monofactoriais deste tipo são pasto para populismos, nacionalismos e para a exclusão.

O segundo aponta para uma afirmação inequívoca e enérgica de rejeição de qualquer forma de uso excessivo da força por qualquer organismo do Estado responsável pelo cumprimento do Direito. Do mesmo passo que não é admissível considerar que, ainda que tenha havido o tal excesso, é justificável o comportamento de quem arremessou pedras à polícia, destruiu objectos ou se envolveu em rixas com as forças de segurança. São crimes que devem ser investigados e eventualmente punidos, como quaisquer outros. Não podemos embarcar numa lógica que não vinca com clareza a necessidade de um braço armado do Estado forte no combate aos delitos, pois essa é a negação da forma de vida comunitária que desejamos. Donde, hipóteses existem em que o uso da força é tão justificado quanto necessário.

O que me conduz a outra advertência: ninguém sabe ao certo o que aconteceu, pelo que deixemos a Inspecção-Geral da Administração Interna e o Ministério Público apurarem tudo, sobre quem interveio como membro de uma força de segurança ou como cidadão do bairro em questão ou de qualquer outro ponto do território.

O que é condenável, por certo, são todas as frases de pessoas com responsabilidades políticas e sociais que, à boleia do que “parece ter sucedido”, desatam a proferir sentenças inimpugnáveis na praça pública ou a incentivar os eventuais criminosos à continuação de tais actividades, ou mesmo, simplesmente, a apelar a quem tem sede de protagonismo delitual e que em nada está relacionado com estes eventos, a violarem a ordem e a tranquilidade públicas.

Aqui não há esquerda ou direita, mas somente a afirmação de que o Direito tem de se sobrepor a tudo; a proporcionalidade; a regulamentação existente quanto ao uso da força pelas polícias, armas de fogo incluídas; a discricionariedade vinculada na concreta actuação das forças de segurança que a lei igualmente garante. É típico de uma classe política pouco qualificada qualquer aproveitamento de episódios como estes para ganhar supostos votos, quando o que deveriam exigir é o apuramento de toda a verdade, sendo certo que, nestas coisas, nunca há só preto ou branco, mas zonas de cinzentos. O discurso da “bófia má” e dos “pobres bons” não tem adesão à realidade e ameaça os fundamentos democráticos.

Na minha actividade profissional, já presenciei casos em que houve, de facto, excesso de força policial e esta não escolheu raças, etnias, ideologias ou credos. Também já intervim em casos em que se procurava apenas obter dinheiro à custa de supostos crimes policiais. Se há membros das forças policiais racistas, xenófobos, homofóbicos, preconceituosos? Claro que sim. Mas elas e eles não são pessoas como nós e a luta contra estes fenómenos não é um desígnio comum? Acaso farão parte de uma casta especial? É verdade que, devido às funções que desempenham, são estas pessoas a face visível do Estado, o que torna mais censurável que esses defeitos se repercutam na sua actividade, por lei vinculada à igualdade, imparcialidade e objectividade.

Investigue-se tudo, a todos os níveis de comando, de ambas as partes. Mas não se transforme o que aconteceu num pelourinho das polícias. E reflita-se, a sério, sobre a integração de parte das pessoas que habitam em bairros desfavorecidos. Quando a polícia tem de neles intervir, é porque a rede social, educativa, formativa, económica, cultural falhou. E não se peça à polícia para se substituir ao Estado na obrigação que tem de não construir guetos, de pensar as cidades de modo inclusivo e não amontoar os mais desfavorecidos a um canto. Isso sempre foi um potencial barril de pólvora.

O Porto, como outras cidades, têm dado exemplo: os bairros sociais estão espalhados pelo concelho e não proscritos aos banlieues. E, acima de tudo, é essencial conhecer essas populações para sobre elas intervir. Conhecê-las cientificamente para intervir, depois, com tudo aquilo que seja necessário, mas começando sempre pela premissa que o cumprimento da lei, por todos, independentemente de quaisquer características pessoais, é uma obrigação constitucional e cidadã da qual ninguém pode nunca ser dispensado. Se nos deixarmos levar por alguns “cantos da sereia” que nisto vêem um suposto autoritarismo – que é tresler o que escrevi –, então a factura de um qualquer Estado sem Direito deve ser remetida a essas e a esses iluminados.

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