Um romance soberbamente inquietante

Um falso livro policial: começa com um mistério e revela-se uma reflexão sobre a passagem do tempo. Reservatório 13, de Jon McGregor, é um romance soberbamente inquietante.

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O tempo passa e é nisso que McGregor se centra ROBERTO RICCIUTI/GETTY IMAGES

Este é um livro sobre a vida de gente comum. No sentido em que cada um vê o outro como comum e, como tal, a si mesmo enquanto excepção. No entanto, é capaz de conferir uma dimensão integradora a essa ideia de se ser “comum”. Ao lermos sobre cada um percebemos o que seria óbvio — pelo menos segundo o livro que temos pela frente. Comuns somos todos. Esta é a ideia que perpassa da observação de cada existência de uma pequena comunidade rural — de que nunca sabemos o nome — muito perto de Manchester, no Norte de Inglaterra. “As pessoas comuns são de alguma forma as ‘outras’ pessoas. A minha opinião é a de que ninguém é comum para si mesmo. Cada história de vida é interessante, complicada e com cambiantes”, disse Jon McGregor numa entrevista ao Guardian em 2017, ano em que saiu a edição inglesa de Reservatório 13, romance que nesse mesmo ano seria finalista do Man Booker Prize.

Antes de avançar, há outro sublinhado que se retira do livro e da entrevista a McGregor: este é um lugar, que como quase todos os lugares, acredita que não se alimenta de mexericos. E cada pessoa que nele vive está convencida de que não é bisbilhoteira. Se fosse mesmo assim, esta história não teria existido.

Reservatório 13 foi o primeiro romance em sete anos Jon McGregor, 42 anos, natural da ilha Bermuda, onde nasceu em 1976, quase por acaso, filho de um vigário, e que cresceu em várias zonas de Inglaterra com dois grandes temas a preencherem-lhe a cabeça: a ideia de família e de classe. Já os explorou em contos, noutros romances, mas volta a eles em Reservatório 13, um falso romance policial ou de mistério, que ao longo da leitura se revela uma reflexão sobre o tempo, tendo como protagonistas a população de uma aldeia e os elementos que compõem a paisagem onde essa aldeia existe. 

Arranca com o desaparecimento de uma rapariga, Rebecca Shaw, ou Becky ou Bex. Tinha ido passar o ano com os pais num antigo celeiro transformado em habitação. “Tinha 13 anos de idade. Quando foi vista pela última vez envergava uma camisola branca com capuz e um colete azul-escuro, calças de ganga pretas e sapatos de lona. Tinha 1,52 de altura, cabelo loiro escuro e liso, pelos ombros. Pedia-se a quem visse alguém que correspondesse a essa descrição que contactasse de imediato a polícia.”

Diante do acontecimento dramático, a população, em conjunto com a polícia, desencadeia uma série de buscas com estratégias mais ou menos rebuscadas para encontrar a rapariga e esse passa a ser o assunto transformador do quotidiano dessa comunidade que, de imediato, começa a falar. Essas falas são os verdadeiros narradores de um livro dividido em 13 capítulos, o mesmo número de anos de Rebecca, apropriadas, por sua vez, por um narrador omnisciente que paira sobre todos os outros sem nunca saber exactamente a verdade de ninguém.

Através de um ambiente de natural suspeição, criado por McGregor com recurso a um modelo clássico na literatura de que a ameaça vem de fora — a família da rapariga estava de visita —, o equilíbrio da comunidade é ameaçado, mas nunca da forma que que se poderia pensar. Ou seja, há uma tragédia que vai ressoando sem, no entanto, se sobrepor às pequenas tragédias locais que com o passar do tempo, naturalmente, delegam para uma espécie de sombra  — inquietante, é certo — o mistério do desaparecimento da adolescente.

Rebecca desaparece e, por mais estranho, a vida continua. Há pessoas a chegar, outras que vão embora; há separações, paixões, segredos; uma mulher que faz limpeza, Irene, e sabe mais do que o homem que espera uma operação à anca e está confinado a casa; há uma morte e um funeral; nascem crianças; os adolescentes da idade e Rebecca, que contactaram com Rebecca, vão para a universidade. E os silêncios tácitos que possibilitam a continuidade da vida num sítio de pouca gente. Por exemplo, ninguém quer ler a reportagem sobre um condenado local porque isso lhes é insuportável. Ali, o mal existe como noutro lado qualquer, mas está na mesma rua, na porta ao lado, em casa, e é preciso continuar.

E a água do rio e da barragem sobe e desce, seguindo os ritmos naturais, as pesquisas continuam, mais cadenciadas; sucedem-se boatos sobre uma eventual existência de Rebecca noutra geografia. E cada capítulo começa com as mesmas palavras: “À meia-noite, na passagem de ano...”

O tempo passa e é nisso que McGregor se centra, como quem tem uma câmara que segue os passos, sabe das falas, sublinha os silêncios de quem observa e tem uma capacidade brilhante de, através dessas ferramentas e de uma linguagem sincopada, por vezes austera, frases curtas em parágrafos longos sem que os diálogos sejam assinalados a não ser pelo modo como conferem ritmo ao texto, criar uma tensão permanente. Isso, e uma espécie de névoa que tanto ajuda ao mistério como à melancolia, num relato da vida rural na actualidade, com as marcas deste tempo a intrometerem-se e a contaminarem um modo de vida ancestral. Vê-se o surgir das redes sociais, o papel dos telemóveis, as transformações nos media, a assistência social, novas formas de violência e de crime, um mundo em mudança nos 13 anos que o livro atravessa. Isto, integrado nos ciclos da natureza, nas alterações da paisagem, tão detalhadamente trabalhada como as características das personagens. Uma e outras sujeitas a realidades repetitivas que McGregor transpõe para a linguagem. “Nos últimos dias de agosto fez um calor intenso, e tudo o que tinha de se mexer mexia-se com lentidão. Nas hortas, os canteiros estavam cheios de feijões e curgetes, e as plantas espalhavam as suas folhas pelos carreiros. As abelhas voavam, gordas, aos ziguezagues, entre as flores, e as lesmas empanturravam-se. Os primeiros cordeiros estavam prontos para ser vendidos e os irmãos Jackson andavam muito ocupados a seleccioná-los e a colocá-los no atrelado. No campo de críquete, perderam o jogo anual contra o Cardwell. A mãe da rapariga ia à igreja de vez em quando. Chegava mesmo antes de a missa começar, a vigária acompanhava-a até um lugar na coxia, que lhe estava reservado, e saía durante o hino no fim da missa. Estava assim combinado. Jess Hunter esperava por ela no carro, por vezes. As pessoas percebiam que não deviam incomodar.”

O desaparecimento da rapariga é o elemento perturbador de uma normalidade que resiste a ele, por mais que isso seja perturbante na pequena comunidade. Esse será o verdadeiro mistério, o de que apesar de tudo, a vida continua e a paisagem também. McGregor diz-nos isso de uma forma tão concreta quanto etérea. 

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