Resgatar a Europa

Vai ser um trabalho árduo, mas seguramente desejável, convencer o eleitor/contribuinte europeu de que há um ganho pessoal na permanência na União. Como?

O estado comatoso da União Europeia, que muito preocupa os espíritos mais empenhados na salvaguarda de um projecto de paz e de prosperidade, tem incentivado múltiplas tomadas de posição que insistem na necessidade de uma reflexão urgente sobre as soluções possíveis para evitar a desintegração da União.

Vêm-se acumulando sinais de desesperança. As elites dirigentes, sobretudo nas instituições europeias, arrogaram-se um papel de iluminados, menosprezando as dúvidas dos mais cautelosos, insultando o questionamento dos atrevidos, e tudo numa correria para a frente cujos críticos eram apelidados de nacionalistas ou de populistas.

Os anunciados progressos traduziram-se afinal em purgatórios de estagnação económica, em crises de desemprego, em saldos de direitos e de princípios, em discriminações e desigualdades. Uma União assim está condenada a morrer. Tal pode acontecer como uma lepra a perder bocados ou uma gangrena ligeira que vai infectando tudo. A não ser, todavia, que o cidadão volte a acreditar no projecto, na certeza porém de que para tratar do doente é preciso escolher o bom antibiótico.

Há que resolver a falta de democraticidade da actual arquitectura da UE. Esse aspecto já foi objecto de um manifesto “Da Democracia na Europa”, publicado neste jornal. Se o cidadão europeu não voltar a acreditar que a sua opinião é ouvida, não vota. E importa demonstrar com resultados concretos que cada cidadão tem uma vantagem directa e pessoal em ser um cidadão europeu não deixando por isso de ser um cidadão nacional.

Todos os países europeus têm uma história de séculos que valorizam e que constitui uma referência fundamental para cada cidadão. A vertigem pró-federalista que animou certos espíritos ignorou os compreensíveis receios de muitos sobre as consequências de uma dissolução num gigante longínquo, anónimo e punitivo. A ligeireza com que se ‘avançou’ para procedimentos de decisão por maioria, agravada pelo facto de afinal se atribuir em todas as instâncias um diferenciado número de votos a cada Estado-membro, facilitou uma dinâmica de directórios e reforçou a suspeição de que manda quem pode e obedece quem deve.

A insistência no chamado “método comunitário” em substituição de um “método inter-governamental veio a revelar resultados perversos e a ofender interesses legítimos minoritários. O chamado “europeísmo convicto” atropelou sem rebuço os genuínos sentimentos de pertença a uma dada comunidade, com tradições, língua e cultura próprias. Essa gestão arrogante de uma realidade tão diversa e rica como são as diferentes regiões do continente europeu havia de provocar uma reacção de resistência a qualquer movimento de integração, preferindo esta uma afirmação conflituosa de identidades, com base numa falsa noção de patriotismo que apenas esconde projectos de fechamento e de suspeição sobre o que é diferente.

A recuperação da confiança no projecto europeu requer, portanto, que se privilegie, pelo menos a nível do Conselho, o método inter-governamental, baseado no consenso. É indispensável que intervenham no processo todos os órgãos representativos da vontade popular, nomeadamente os parlamentos nacionais e os parlamentos regionais. Estes ainda são a melhor expressão da democracia representativa e é neles que o cidadão melhor se revê.

A pertença à União Europeia é uma mais-valia importantíssima para cada país aderente e para cada cidadão. Mas de há tempos a esta parte a UE tem conseguido apresentar-se com o seu rosto mais antipático, acabrunhando-nos com regulamentações complicativas, culpabilizando-nos pelos insucessos e frustrando as expectativas que antes nos criara. É evidente que para este travo amargo também contribuíram alegremente os governos nacionais, muito lestos em atribuir à Europa o odioso das novas obrigações quando, afinal, são eles próprios co-autores desses novos incómodos.

Nos últimos anos, a UE secundarizou as suas alegadas preocupações sociais para dar primazia a concepções de governação mais compatíveis com a financeirização da macroeconomia, aplicando o estafado princípio de que é protegendo o forte que, por uma espécie de spill-over, o benefício chegará ao menos desenvolvido. A gestão da crise de 2008 e a ênfase que então foi dada à defesa de um sistema bancário desacreditado foi a clara demonstração de que o cidadão europeu é antes do mais um mero contribuinte e não o sujeito/destinatário das políticas que supostamente o beneficiariam.

O modus operandi europeu sobre a moeda única, seja pela arquitectura dos mecanismos de gestão, seja pela pesporrência paternalista do Eurogrupo, de par com um Banco Central Europeu que a ninguém responde, foi um espectáculo revoltante. Agravado pela percepção de que se fala grosso com os mais vulneráveis, como foi o caso da Grécia, ao mesmo tempo que se condescende com os mais fortes (“La France c’est la France”, Juncker dixit).

A Europa tem sido incapaz de provar ao cidadão europeu que lhe traz mais benefícios do que barafundas e foi-se transformando, aos olhos de muitos, na parte do problema em vez de ser parte da solução. As ideias de solidariedade e de coesão evaporaram-se nesse fervilhar de recriminações e de sanções. Vai ser um trabalho árduo, mas seguramente desejável, convencer o eleitor/contribuinte europeu de que há um ganho pessoal na permanência na União. Como?

a) Aplicando medidas que visem assegurar, em prazo determinado, alcançar um nível de convergência económica e social perto dos 80%. É evidente que para esse fim terão de haver transferências financeiras entre o orçamento da UE e os dos Estados-membros, bem como um reforço do orçamento da União através de novas receitas;

b) Lançando um programa social que assegure a cada cidadão um rendimento mínimo, erradicando a pobreza, garantindo um Serviço Global de Saúde e estabelecendo padrões de dignidade habitacional.

A União Europeia é uma comunidade de Direito. Mas o problema que hoje a aflige, seja em que forma ou área de acção se apresente, é um problema político e como tal deve ser discutido. Se esta ou aquela proposta de solução obriga à revisão de algum tratado, tal é uma questão técnico-jurídica que não deve toldar a liberdade do debate.

A actual situação não autoriza a nossa indiferença. É com esta convicção e com este espírito que, juntamente com outros ex-funcionários da União Europeia, abrimos no Facebook a página “O rapto da Europa”, página pública para um confronto desempoeirado de ideias e de propostas.

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