Estado transformou habitação num activo financeiro, alertam investigadores

Investigadores da Universidade de Coimbra alertam para desequilíbrios e desigualdades criadas pelo facto de a habitação ter sido encarada, nas últimas décadas, como um activo financeiro e não como um direito constitucional.

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Nuno Ferreira Santos

A habitação tem vindo a ser transformada num activo financeiro transaccionável ao longo das últimas décadas e o resultado do nexo finança-habitação que foi criado tem vindo a acentuar desequilíbrios e desigualdades. Esta é a principal tese da publicação do Relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas, intitulado “A nova questão da habitação em Portugal”.

Nesta publicação, que é apresentada esta terça-feira em Lisboa, os investigadores do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra demonstram que em Portugal se privilegiou um modelo privado de provisão de habitação, “crescentemente assente em mecanismos mercantis”, assumindo este bem essencial como uma vulgar mercadoria, isto é, um bem que é produzido para ser transaccionado no mercado.

O resultado destas opções tem sido “um acumular sucessivo de desequilíbrios e desigualdades”, sem que o Estado tenha conseguido solucionar o que considera ser “uma resposta ineficaz para a nova questão da habitação”. Numa altura em que está a ser debatida na Assembleia da República a primeira Lei de Bases para o sector, os investigadores deste estudo, coordenado por Ana Cordeiro Santos, reparam que a actual política de habitação continua a assentar “em novos estímulos fiscais e engenhosas soluções financeiras, para incentivar promotores privados a resolver o que o Estado não consegue”. 

O estudo é assinado por 15 autores que, recorrendo a diversas perspectivas e enfoques, traçam o retrato de um sector através de uma abordagem de economia política. “A questão da habitação de hoje remete para a economia política de um sector cada vez mais dominado pelo capital financeiro global, mas com impactos em territórios precisos, produzindo crescentes desigualdades socio-territoriais”, lê-se na introdução da obra. “A percepção de que a propriedade privada apenas confere direitos, que os mecanismos de mercado são superiores às alternativas, ou que ao Estado não lhe resta outra escolha que não seja a de atrair capital são ideias cada vez mais arreigadas, e que sustentam uma política de habitação quase exclusivamente assente em benefícios fiscais para incentivar os privados a fazer o que o Estado vai abdicando de fazer”, escreve Ana Cordeiro Santos, no capitulo em que é apresentada uma súmula da obra.

Apesar de a habitação sempre se ter afirmado como uma área de pleno direito constitucional, a escassa participação do Estado na provisão directa de habitação acabou por ser substituída pelos privados. O sector privado foi o responsável pela construção de habitação e a provisão pública foi permitida “para uma política de habitação social para pobres”.

Depois da entrada no mercado único, a banca começou a financiar não só a construção da habitação mas também a compra de habitação por parte das famílias. Porém, “o capital abundante e barato não contribuiu para a transformação estrutural da economia portuguesa”, o crédito malparado nas carteiras dos bancos disparou e o acesso ao crédito hipotecário ficou mais restritivo: “o sistema bancário português ficou completamente exposto e o mercado imobiliário paralisou”.

Entrou-se então, segundo os autores do Observatório, numa segunda fase deste nexo finança-habitação, com o memorando assinado com a troika e a publicação de uma nova lei do arrendamento urbano que, embora tivesse como objectivo a dinamização do mercado de arrendamento, resultou “numa aceleração dos termos de contrato de arrendamento, com vista a venda dos imóveis ou para dar novos usos como o alojamento local”.

Ao interesse no imobiliário residencial português por parte de cidadãos de estados Extra-europeus através do regime de Autorização de Residência de Actividade de Investimento (ARI), somou-se a procura de cidadãos europeus (franceses, italianos, britânicos e suecos). O resultado foi que entre o primeiro trimestre de 2014 e o segundo trimestre de 2018 os preços de habitação aumentaram 34%, o que fez com que a habitação se torne cada vez menos acessível nos locais de maior pressão. 

“O hiato entre os rendimentos e os preços e as rendas de casa, que empurra a população para as periferias, põe cada vez mais em causa a adequação do modelo privado para este sistema de provisão”, concluiu Ana Santos, que defende que só “um multidimensional processo de desfinanceirização” poderá contribuir para resolver as velhas e novas questões de habitação em Portugal. Ou seja, "uma estratégia radicalmente divergente da preconizada na Nova Geração de Políticas de Habitação". Este pacote de medidas que já passou no crivo do Parlamento defende a promoção de habitação a preços acessíveis, recorrendo a incentivos fiscais e a fundos financeiros estruturados para aumentar a oferta de habitação.

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