Lei de Bases da Saúde: oportunidade de projetar o futuro

Nenhuma letra de lei será tão efetiva quanto um pacto de financiamento do SNS para o centrar como prioridade, seja ele condicionado ao crescimento da economia ou a mínimos fundamentais.

Esta revisão da Lei de Bases da Saúde tem duplo simbolismo. Acontece quando o Serviço Nacional de Saúde (SNS) celebra 40 anos (Lei 56/79) e culmina uma discussão ideológica após o período de assistência financeira que fustigou a Saúde a partir de 2011, quando a dívida era superior a 5 mil milhões de euros (fonte Tribunal de Contas) e a despesa pública em percentagem do PIB diminuiu, desde então, de 6,5% para 5,9% (fonte: OCDE).

Porventura pelo segundo aspeto, a revisão é motivada pelo financiamento do sistema, entre SNS e privado e social. Já em relação aos 40 anos, além da celebração deve também servir de reflexão sobre as próximas décadas. Por isto, a revisão da Lei de Bases e os 40 anos do SNS são indissociáveis.

Resumir o processo à contestação ideológica do financiamento impedirá a concretização de uma lei que sirva por muitos e bons anos e perspetive princípios orientadores dos deveres e direitos constitucionais da promoção e proteção da saúde, salvaguardando o espaço necessário para a diversidade de ideias, soluções e políticas, independentemente de quem venha a ter a responsabilidade de as criar, executar e de ser escrutinado por isso.

Para essa reflexão indissociável importa recordar três princípios da lei fundadora: cumpre ao SNS assegurar o direito à proteção da saúde e a todos vincula o dever de a defender e promover (a Saúde, e não só o SNS); o Governo propõe anualmente a afetação ao SNS de dotação orçamental que acompanhe a evolução do PIB; podem ser estabelecidos convénios com privado e social nos casos em que a rede pública não seja capaz de assegurar os cuidados necessários.

Sobre o primeiro, Portugal tem dos melhores sistemas de saúde. O SNS tem dificuldades conhecidas, mas não deixa de ser um reconhecido património que tem resistido pela defesa e promoção da saúde. Dos cidadãos que nele depositam confiança e reconhecem uma capacidade de resposta em situação crítica; dos profissionais que nele exercem com elevada competência e até à exaustão; de decisores que não fizeram o SNS embarcar em experimentalismos radicais; e de boas estratégias de saúde pública que perduraram, mesmo entre ciclos políticos.

Sobre o segundo, importa recordar que na última década a falta de financiamento serviu para pagar dívidas e evitar o colapso do sistema financeiro e, por conseguinte, do tecido e Estado sociais (mais de 17,5 mil milhões de euros em 10 anos, equivalente a 2 anos de SNS). Essa razão sentenciou o desígnio da lei fundadora sobre dotação orçamental, que assumia a Saúde como uma prioridade e nos dizia que uma Saúde de primeira não se faz com financiamento de segunda.

Falta de profissionais
Se o financiamento do SNS tivesse acompanhado o crescimento do PIB, só entre 2014 e 2017 teria sido reforçado em 1.185 milhões de euros. Na história deve ficar vincado o memorando de 2011, que previa limitar a admissão de pessoal na administração pública, congelamento de salários, cortes imediatos de 550 milhões de euros na saúde, redução de 15% em custos operacionais do setor empresarial do Estado, aumento das taxas moderadoras, etc.

Daí disparou o recurso a empresas de trabalho temporário para suprir a falta de profissionais de saúde, a desmotivação dos profissionais pelo congelamento de carreiras, vias paralelas de contratação e maior competitividade dos salários noutros setores e países, a falta de equipamentos, de investimento e modernização, e, por consequência, maiores necessidades às quais os setores privado e social foram respondendo. Não é por acaso que desde então aumentou a proporção paga diretamente pelas famílias e pelos cidadãos com a saúde.

Portanto, nenhuma letra de lei será tão efetiva quanto um pacto de financiamento do SNS para o centrar como prioridade, seja ele condicionado ao crescimento da economia ou a mínimos fundamentais. É uma resposta necessária, evidente e com a qual todos concordam, mas haverá algo a abdicar e é esta segunda parte que ninguém parece querer discutir. Apenas proclamar que há insuficiências e apontar as culpas a outro alguém.

Por isso mesmo não se pode levar a sério quando se diz que será uma nova Lei de Bases que reforçará o investimento no SNS ao retirar da equação os setores privado e social. Desde logo porque é em sede de votação do OE que se tomam as decisões que estas propostas refutam (financiamento de PPP devidamente avaliadas na relação custo-benefício, convenções com setores privado e social para assegurar acesso, prestação atempada de cuidados e liberdade de escolha, progressão das carreiras dos profissionais e incentivos à exclusividade, previsibilidade e autonomia de gestão nas unidades de saúde, impedir cativações na Saúde, e agora até a inclusão de vacinas no PNV!).

O que impediu, então, que os arautos propusessem em OE que a despesa com os setores privado e social dependesse de comprovada necessidade e incapacidade de resposta do SNS? Teria sido uma boa oportunidade para testar se o discurso adere à realidade. Ou então já sabiam a resposta, e seria (mais) incompreensível defender perante o povo uma prestação de menor relação custo-benefício com o argumento único de ser realizada no SNS, assim como ficaria (mais) evidente que a realização de um contrato necessário de prestação externa tem como objetivo assegurar o acesso à saúde, e nada tem de ideológico ou dogmático.

Se for este o caminho, de sacudir responsabilidades através de uma lei enquadradora que encobre um radicalismo ideológico desfasado da realidade, então a expressão “Base” está certa e encontra a sua melhor definição em “produto cosmético de maquiagem”.

A Lei de Bases deve proteger os cidadãos durante largos e bons anos, não sobrepondo esta necessidade à cristalização no tempo, nem impor extensas agendas que sirvam o curto prazo. Deverá projetar o futuro decorrente do balanço de 40 anos do SNS, dos motivos de celebração (mortalidade infantil, doenças infeciosas, dependências, vacinação, acesso geral e à inovação), e do caminho a seguir.

Hoje sobrevivemos mais à nascença, mas com altas taxas de prematuridade e baixo peso à nascença que condicionam o desenvolvimento das crianças e as expõem a doenças crónicas no futuro. Também vivemos mais tempo, mas além da sobrecarga de doenças crónicas e maior incidência de cancros, a última década de vida é de fraca qualidade, quer pela doença, quer pela pobreza e assimetrias nas condições de habitabilidade e no isolamento do Portugal real e tão poucas vezes falado, que são ainda desafios para muitas famílias. Podemos e devemos nascer e envelhecer melhor.

São desafios complexos, mas temos conhecimento suficiente para mobilizar esforços para os resolver e projetar um sistema de saúde com futuro.

Sugerir correcção
Comentar