O Portugal liberal e europeu dos nossos liberais

Não creio que a geração de jovens turcos que agora desafia a liderança de Rui Rio se possa libertar facilmente da lógica de “affairisme“ em que cresceu.

O Dr. Montenegro e os seus apoiantes prestaram um grande serviço ao atual primeiro-ministro e, eventualmente, ao Dr. Rui Rio, oferecendo-lhe uma justificação para um mau resultado do PSD nas eleições deste ano. O desafio à liderança foi lançado por membros da ala mais radical do PSD, que se considerará liberal e menos identificada com a social democracia. Este repto surgiu conjugado com a realização, em Lisboa, de um encontro de órfãos da direita pelo autoproclamado Movimento Europa e Liberdade. Acontece que os setores sociais que constituem a base, em Portugal, dos partidos de direita nunca morreram de amores pelo aprofundamento da construção europeia e também não são liberais.

A direita, mesmo quando foi governo, não deu provas de grande consistência com os princípios da economia e da sociedade liberais. Sempre foi, no essencial, soberanista, conservadora nos costumes, intervencionista e protecionista na economia. Em Portugal, a direita afirma-se obsessivamente liberal apenas na cruzada contra o poder fiscal e a ação regulatória, ainda quando esta última visa garantir uma maior transparência e equilíbrio económico, social e ambiental. Ao revés, sempre foi em geral muito amiga do orçamento e do Estado quando estes apoiam interesses parasitários, distorcendo o mercado, por via de subsídios ou de outros instrumentos protecionistas, segundo o velho princípio — privatizem os benefícios e coletivizem os prejuízos.

Aliás, o comportamento da direita e da esquerda, quando são governo, não tem diferido muito neste âmbito. Só as clientelas são diferentes. A direita caracteriza-se por ser amiga dos “negócios“, mas nem sempre aí está sozinha. Se a economia portuguesa se foi libertando progressivamente da estatização e do protecionismo, isso deve-se, predominantemente, ao arejamento permitido pela integração na União Europeia. No entanto, a nossa periferia geográfica mantem largos setores imunes a uma verdadeira concorrência.

Outro flagelo de que enferma o sistema político e a economia é o chamado tráfico de influências que não quadra numa sociedade liberal, enquanto for um processo não transparente. Os partidos de poder parecem continuar a conviver bem com essa praga que prejudica a livre concorrência e a boa alocação dos recursos. Alguns dos nossos maiores especialistas em troca de favores são mesmo comentadores nos media em “prime time”, soprando no éter ética e moralismo. Ninguém parece preocupar-se demasiado com a presença nas assinaturas de grandes contratos públicos de ex-governantes que, no correr do tempo, ora estão do lado do adjudicante, ora do adjudicatário. Entranhou-se a ideia de que seria impossível fazer política fora dessa rede de interesses público-privados. Os programas de governo dos principais partidos, além de conjuntos de generalidades de uma abrangência enjoativa, são em geral “shopping lists“ defendidas pelos principais interesses apoiantes, sem qualquer consistência em termos de planeamento estratégico do desenvolvimento do país.

A situação no PSD foi agravada, nos últimos 20 anos, pela emulação comportamental com o PP espanhol, fazendo infletir a linha doutrinária razoavelmente para a direita. Quase em simultâneo, o CDS abandonava discretamente a sua matriz democrata cristã e proclamava-se liberal, nunca se enquadrando, no entanto, no Partido Liberal Europeu. Aos governos destes dois partidos, batizados de liberais, seguiram-se os seis anos do governo liderado por José Sócrates, em que a cultura dos negócios se terá ampliado com resultados catastróficos, nomeadamente para o próprio. Quer na gerência PSD/CDS, quer na socialista que lhe seguiu, o liberalismo esteve enfiado na gaveta, refém, como sempre, dos interesses económicos predominantes. Assim perdeu duas vezes na secretaria (casos Portucel e PT) o empresário Belmiro de Azevedo.

A semente tinha proliferado e o PSD de Passos Coelho manteve-se submergido por influências que aproveitaram o balanço da troika para irem “além da troika". Se excetuarmos o caso do BES, em que aparentemente as autoridades agiram na defesa do interesse geral contra interesses económicos internos, a última gestão PSD/CDS não se notabilizou por dar corpo a um ideário liberal. As privatizações atabalhoadamente realizadas, levando por exemplo à concentração no setor elétrico de interesses acionistas afins, a reestruturação do setor da água sem uma prévia reforma da administração do território, para a qual nunca houve coragem nem força, são exemplos de liberalismo a conta-gotas que só assumia a face para baixar salários, pensões e, em geral, todas as despesas públicas que não tivessem como beneficiários interesses privados. Não creio que a geração de jovens turcos que agora desafia a liderança de Rui Rio se possa libertar facilmente da lógica de “affairisme“ em que cresceu. Também, alguns desses potenciais “refundadores” da direita política portuguesa têm defendido a ideia de recuperação de soberania face à Europa, não se entendendo que alternativas credíveis propõem.

Rui Rio tem uma imagem de seriedade e está visivelmente interessado em mudar a cultura prevalecente no partido. A luta interna e o relativo bom desempenho da economia portuguesa têm dificultado a sua afirmação como líder de um partido que ele deseja recentrar no espetro político. Mas não creio que os interesses que lhe opuseram desarmem facilmente. Se ganhassem, não seria Rio a perder, mas antes o País. Rui Rio deveria eleger como um dos objetivos principais da sua ação a ética e a transparência na vida política e económica do País. Seria uma verdadeira causa nacional, aplaudida pela maioria dos eleitores, um terreno de afrontamento distintivo. Para além de regenerar o partido, Rio deverá rapidamente definir prioridades, deixando de lado as pequenas polémicas da espuma dos dias.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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