Que futuro para a “direita”?

Há décadas que ouço os políticos e os partidos dizer que é ao centro que se ganham eleições. Assim tem sido – mas já não é.

Qualquer reflexão sobre este tema terá de partir da consideração de um dos fenómenos mais importantes que se desenrola sob os nossos olhos, e está em vias de se tornar um facto generalizado e consumado: numa parte significativa do Ocidente democrático, verifica-se uma ruptura emocional entre os eleitores – o povo – e o establishment. Ruptura e rejeição terminante: toda a retórica que evoque e se assemelhe à retórica do establishment, seja de direita, esquerda ou centro, provoca de imediato uma rejeição por parte de uma massa expressiva das sociedades democráticas, que não se revê em quem a governa. Não estamos, porém, perante uma mera “crise da representação democrática”. A coisa é muito mais funda, e põe em causa os pilares fundacionais da organização social e política das nossas democracias.

Há décadas que ouço os políticos e os partidos dizer que é ao centro que se ganham eleições. Assim tem sido – mas já não é: o centro de ontem está hoje em vias de minguar, tendendo para a sua redução a dimensões residuais. Ao encolhimento do centro corresponde, logicamente, a bipolarização política em torno de dois extremos raivosamente inimigos. Mas a maior novidade é que essa agremiação bipolar não se divide entre esquerda e direita. Divide-se entre um amontoado de descontentes de todos os azimutes, por um lado, e o establishment e os clássicos partidos de poder, por outro. Estamos a assistir a uma radical reconfiguração do espaço político-ideológico, em consequência da qual “esquerda” e “direita” se tornaram categorias de análise e “arrumação” já largamente obsoletas.

Não creio que este processo muito sumariamente descrito seja reversível. Em última análise, esse processo foi desencadeado pela globalização, um fenómeno imparável, e tornou-se possível porque a tecnologia computacional abriu um enorme leque de formas de comunicação que escapam ao controlo dos poderes estabelecidos. Os partidos clássicos perderam definitivamente o monopólio da representação e da convocação dos eleitorados. Ninguém sabe ao certo que desenho assumirão novas formações políticas, adequadas ao enquadramento e reinclusão na polis de massas heterogéneas, que apenas têm em comum o ressentimento ou a convicção, aliás fundada, de que o actual sistema político democrático as abandonou à sua sorte miseranda. 

Os partidos, na última década, desataram todos a “abrir-se à sociedade”... porque perceberam que estavam cada vez mais distantes e isolados de uma sociedade mais exigente e, alegadamente, mais desejosa de participação. A distância e o isolamento são verdadeiros. Mas duvido muitíssimo da presumida ambição participativa. O motivo da maior exigência não era nem é a falta de participação: era e é a carência económica, o desemprego e a segurança. Segurança que proteja os imprestáveis gerados pela globalização da queda numa cruel e humilhante “proletarização”. Estas são as principais preocupações de um vasto e disforme agregado social a que alguém já chamou “Lumpen-pequeno-burguesia”, cuja emergência não substituiu o “Lumpenproletariat”, pelo contrário: somou-se-lhe; e ambos, white collars e blue collars, juntos e misturados, constituem o que podemos chamar uma imensa “Lumpenpopulação”. É principalmente esta “Lumpenpopulação” que elege os Trumps e os Bolsonaros, mas também os Beppe Grillos ou os Syrizas e os Podemos.

A Democracia não sobrevive sem partidos. Estes, na ânsia de se tornarem mais atractivos, “abriram-se” à sociedade, mormente convidando meros simpatizantes indescritos a participar na eleição de órgãos ou chefias partidárias. Este remendo é simplesmente suicida: destrói o partido, calcando aos pés a distinção fundamental entre militante, que paga quotas e faz trabalho partidário integrado num corpo coeso conformado por hierarquias e liturgias próprias. O voto de um simpatizante vale o mesmo que o voto de um militante?... Com esta panaceia, os partidos estão a destruir-se a si próprios: afinal, quem elege o secretário-geral ou o candidato a primeiro-ministro? Diferentes colégios eleitorais determinam, em momentos diferentes, a nomeação de dirigentes vários. Com esta prática, a legitimidade da hierarquia interna dissolve-se e esta perde a sua autoridade natural.

Os partidos “clássicos” não têm futuro num mundo globalizado, em que as classes sociais deixaram de definir os alinhamentos políticos, e em que impera a comunicação instantânea através das redes sociais, cheias do que nós, pessoas educadas e letradas, chamamos lixo ou “pornografia” política: cheias da raiva, do ressentimento e do escárnio dessa tal “Lumpenpopulação”, que não mais pode ser ignorada e silenciada.

A “direita”, que terá de se apresentar sob um outro rosto adaptado a reajustamentos dinâmicos criadores de uma realidade social movente, estará talvez mais bem apetrechada para adoptar um discurso mais audível e digerível pelos perdedores da globalização. Num Ocidente largamente desindustrializado – também na Europa não faltam rustbelts –, talvez seja mais fácil à direita encontrar um discurso que trespasse a muralha de indiferença e ressentimento que cerca os excluídos. Pelo motivo de que a direita pensa economicamente – ao contrário da esquerda, que detesta a direita precisamente por isso mesmo, pois o realismo e o concreto erguem-se contra a nuvem de abstracções através das quais a esquerda fundamenta a sua (falsa) superioridade moral.

Ora os problemas da “Lumpenpopulação” são muito compreensivelmente de ordem económica. São muito concretos e práticos, dizem respeito à sobrevivência das pessoas, hipotecada aos cantos de sereia com que o establishment julgou que poderia adormecê-las indefinidamente. Ora a massa dos excluídos desatou a votar em quem falava a linguagem deles, deselegante, inculta, grosseira e, para nós, chocante. Essa massa nunca teve voz: nunca teve direito de cidade. Pois conquistou-o na segunda década do século XX, e nós, horrorizados, não compreendemos como possa ela ser insensível aos belos ideais humanitários da liberdade, igualdade e fraternidade. Serão belos, mas são meras abstracções para quem não consegue chegar ao fim do mês.

A “Lumpenpopulação” é radicalmente, essencialmente heterogénea. O que a aglutina não é de esquerda nem de direita, porque não são de esquerda nem de direita a desilusão, a frustração, o ressentimento e o sofrimento. Uma hipotética refundação da “direita clássica” já não tem cabimento. Precisa-se de uma nova direita que começasse por banir um ideário e um discurso comprovadamente falidos. Como falidos estão o discurso e o ideário da esquerda, que agridem ainda mais porque pressupõem um humanitarismo exuberantemente desmentido pelo passado, e pelo presente. A “direita clássica”, se quer ter uma palavra a dizer na sociedade futura, tem de inventar um novo esperanto perceptível e apelativo aos descamisados do mundo ocidental.

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