Os homens também são vítimas de abuso sexual e há uma associação que já ajudou 146

Associação de apoio a homens vítimas de violência sexual, a Quebrar o Silêncio, funciona há dois anos e duplicou os atendimentos em 2018. Maioria das vítimas demora entre 20 a 30 anos a falar sobre os casos.

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Miguel Cabral

Prestes a completar 51 anos, Miguel sente que voltou à vida. Durante quase três décadas, viveu de forma “errante em todos os sentidos”. Saiu de casa dos pais aos 17 anos, aprendeu artes marciais, trabalhou como segurança na noite e a fazer “cobranças difíceis”, consumiu substâncias ilícitas, arranjou muitas confusões. Foi esta a personagem “durona” que criou para o mundo — mas o que os outros não viam era que mal conseguia “viver dentro da sua cabeça”. Até que, quando se casou e teve uma filha, a vida estável começou a ficar marcada pelo trauma que vivia dentro de si.

Miguel é um dos 146 homens vítimas de violência sexual que procuraram o apoio da associação Quebrar o Silêncio nos últimos dois anos (foram 97 em 2018) e um dos 18 sobreviventes que tiveram alta no ano passado - “que ultrapassaram as consequências e impacto do trauma que adveio da violência sexualizada de que foram vítimas” -, segundo dados enviados ao PÚBLICO a propósito do segundo aniversário da associação, que se celebra nesta sexta-feira, em Lisboa.

“Parece que estive 20 anos em coma. Agora noto outras coisas, o abraço da minha filha, o sorriso da minha mulher, as coisas que faço... Tudo tão mais calmo, tão mais tranquilo”, afirma o vigilante numa conversa na sede da Quebrar o Silêncio.

Para Miguel, antes do acompanhamento, a memória do primeiro abuso aos cinco anos era uma névoa. Hoje, as lembranças são vívidas: “Lembro-me de que isto foi na província, numa época festiva. O chão era de terra, as paredes não chegavam ao tecto, as casas de banho não existiam, as camas eram feitas em colchões de palha. Tinha que me deitar cedo porque era muito miúdo. Lembro-me de começarem a largar foguetes, de ficar assustado e começar a chorar. Não sei quem mandou esse meu primo - o primeiro agressor - para o pé de mim para me acalmar. E é aí que acontece a primeira agressão.” Voltou a ser vítima de abuso sexual do primo, oito anos mais velho, que a convite dos seus pais foi viver para a casa da família pouco tempo depois. “Quando tentei falar com os meus pais sobre isso, bateram-me.” E os abusos continuaram até que, aos 12 anos, mais capaz de se defender, disse basta.

Foi quando estava prestes a completar 50 anos que Miguel decidiu procurar ajuda especializada para lidar com o trauma. Poucos anos antes tinha reencontrado “a única pessoa de quem de facto tinha gostado”; casou-se e tiveram uma filha. “Aí a coisa complicou-se, não é? Não podia continuar da mesma forma, com tudo aquilo que andava a fazer. Tinha que arranjar uma solução. Como é óbvio, não estava a conseguir encontrá-la sozinho.”

Na Quebrar o Silêncio, a média de idades dos homens que procuram a associação é de 34 anos, num intervalo de idades que vai desde os 18 aos 77 anos. Para a maioria, é a primeira vez que procuram apoio, 20 a 30 anos após o abuso sexual. Ângelo Fernandes, técnico especializado e fundador da Quebrar o Silêncio, conta que a esmagadora maioria (73%) dos pedidos chega à associação por escrito, por email, mas também pelo Facebook, enquanto 24% preferiram recorrer à linha de apoio. Já lhe aconteceu receber emails sem nada escrito, em que a resposta da associação parte praticamente do zero. É preciso ajudar a perceber que não estão sozinhos.

Miguel esteve vários dias com um email em rascunho, que escreveu depois de ler de fio a pavio o site da associação Quebrar o Silêncio. Enviou-o a 5 de Novembro de 2017, para logo em seguida pensar: “O que é que acabaste de fazer? Não falaste disto com ninguém ao longo de 40 anos e agora estás a abrir-te com estranhos?” A resposta veio logo no dia seguinte. A primeira consulta, cerca de um mês depois. “Não é standard, mas há duas situações que são as mais comuns”, explica a psicóloga da associação Cláudia Caires. “Uma é atingirem um ponto de ruptura tal que não aguentam mais, ou então alguma coisa de bom começa a acontecer na vida deles e não são capazes de as viver e aproveitar. Normalmente é um destes extremos”.

Para Miguel, foi um passo transformador. A história de abusos não se tinha ficado pelas agressões continuadas do primo. Foi abusado por outras vezes, ainda aos 12 anos, por mulheres adultas no local onde dormia quando começou a trabalhar, e ainda por uma prima - “era a minha pessoa preferida na altura”. “Ou seja, com isto tudo comecei a pensar que toda a gente tinha razão. Se é tão gratuito o facto de fazerem isto, o problema é meu, os meus pais tinham razão, eu não prestava para nada. E vivi sempre assim.”

Quando começou a aprender a lutar desportos de combate, jurou a si mesmo “que mais nenhum homem o tocava”. “À última pessoa que me tentou abusar, quando tinha 15 anos, parti-lhe o braço e disse-lhe nunca mais”. Achava que a aparência corpulenta e a capacidade de se defender fisicamente iria resolver o problema, “mas não resolveu tudo aquilo que tinha sido incutido na infância e aquilo que estava a passar”.

Infelizmente, não é uma experiência incomum entre as vítimas de violência sexual. É uma experiência que deixa como marca um profundo trauma, que muitas pessoas carregam ao longo da vida em silêncio. As pessoas atendidas pela Quebrar o Silêncio procuram apoio 20 a 30 anos depois dos abusos, na maioria dos casos sofridos durante a infância ou pré-adolescência, quase sempre por familiares ou pessoas conhecidas da família, e tantas vezes de forma continuada durante anos.

De acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna, referente a 2017, o crime de abuso sexual de crianças foi o que motivou mais inquéritos iniciados entre os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (42,6%), seguindo-se da violação (18,7% das denúncias por crimes sexuais). Segundo o relatório, “mantém-se inalterada a incidência de arguidos masculinos [96,1%] e de vítimas femininas [80,5%]”, e o espaço familiar continua a ser fonte da maior parte das denúncias: 44,5% dos agressores denunciados são familiares, e 23,2% são conhecidos.

Nos casos de violação de pessoas adultas, a disparidade no que toca ao género é ainda mais marcada: 99% dos arguidos são do sexo masculino, e 90,7% das vítimas que denunciam os crimes são do sexo feminino. Novamente, em mais de metade dos casos (55%) existe uma relação familiar ou de conhecimento.

“Um dos grandes desafios na análise deste tipo de abuso é a subnotificação, o que dificulta os esforços para gerar estatísticas precisas”, lê-se num relatório da Unicef de 2014 sobre abuso sexual de crianças, Hidden in Plain Sight, no qual também se referem as lacunas na pesquisa de dados sobre a ocorrência de violência sexual contra rapazes. E isto deve-se a vários factores, desde o pouco conhecimento e sensibilidade social para lidar com o problema à falta de apoio especializado disponível. Portugal tem apenas três projectos com respostas especializadas no âmbito da violência sexual: além da Quebrar o Silêncio, que atende homens, existem dois projectos dedicados a mulheres, o centro de crise da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), em Lisboa, e o centro de apoio Emancipação, Igualdade e Recuperação (EIR), da UMAR, no Porto. A APAV, através da Rede CARE, dá apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual.

O trabalho de divulgação sobre este tema que ainda é tabu leva a que também as mulheres procurem a Quebrar o Silêncio - foram 28 em 2018, quase o dobro das que chegaram à associação no primeiro ano. Ângelo Fernandes explica que estes casos são encaminhados para a AMCV, que dedica o seu trabalho a apoiar mulheres e crianças. No total, entre os casos que permanecem ao cuidado da associação e os que são encaminhados para outros centros de apoio especializado, a Quebrar o Silêncio recebeu 163 contactos no ano passado, quase o dobro dos 84 recebidos em 2017.

Recuperar o controlo, “voltar à vida”

A psicóloga Cláudia Caires explica que o atendimento especializado consiste numa intervenção específica, “e isso faz toda a diferença”. “Já sabemos com que trauma estamos a trabalhar, é uma intervenção um pouco diferente do que seria noutro problema psicológico porque o abuso sexual tem consequências muito específicas”, explica.

Numa primeira fase, é muitas vezes preciso trabalhar com a culpa, ajudar os pacientes a conhecerem as palavras adequadas para falar sobre o que aconteceu, dar-lhes informação para perceberem que o que acontece tem um efeito específico. Em causa estão, muitas vezes, situações de stress pós-traumático. Além disso, esta é uma experiência vivida de forma solitária, silenciosa, ao longo de muito tempo. “A validação é um passo importante, dar-lhes informação, antes de começar o que quer que seja”.

Nos casos de sucesso, os homens recuperam o controlo das suas narrativas - muitos “voltam à vida”, descreve a psicóloga - e é possível terminar o acompanhamento. “O meu abuso durou muitos anos, fez de mim uma pessoa céptica em relação a qualquer tipo de ajuda que houvesse. Como é que alguém ia tirar da minha cabeça as coisas que tinha feito, o mal que fiz às pessoas, os comportamentos de risco que tinha? Pensava que ia demorar uns 10 ou 20 anos”, desabafa Miguel. No final das contas, foi preciso menos de um ano para se aperceber de que “estava diferente”. “A doutora Cláudia ensinou-me a gatinhar, e agora estou a começar a caminhar”, conta. Foi uma “mudança brutal, a libertação que é não nos sentirmos culpados daquilo que aconteceu, porque não somos culpados”.

A psicóloga ressalva que “é importante reconhecer que tal como uma ferida que cicatriza, ela está presente a vida toda”. Mesmo depois de “sair do ninho”, poderão continuar as dificuldades pontuais, algumas crises de ansiedade, momentos mais difíceis de gerir. “Mas já tem as ferramentas necessárias para lidar com isso que antes não tinha”, explica Cláudia Caires: “Sem que isso o mande abaixo, sem que surjam os pensamentos suicidas, sem que surja a baixa auto-estima”.

A capacidade de gerir estas crises traduz-se numa transformação profunda da vida dos sobreviventes. “Não é viver novamente, porque quando acontece em criança - e na maior parte das vezes acontece em criança - isto vai acompanhá-los a vida toda”, recorda a psicóloga. “É a possibilidade de viver, de renascer, de realmente usufruir a vida que não usufruíram até agora.”

Fazer troça é como dizer “comigo não podes contar”

O que leva as vítimas de violência sexual a viverem o trauma em segredo durante tanto tempo? Para Miguel, o que começou com a descrença da família arrastou-se para as relações pessoais, com companheiras que desvalorizaram as primeiras tentativas de partilha. “As pessoas que me rodeavam achavam que eu era intocável.”

A sociedade, no geral, também pode criar ambientes mais propícios à partilha deste tipo de experiências. A começar nas famílias. “Sabemos que é uma realidade que assusta, não é propriamente um tema fácil de debater, de trazer à mesa. Mas é necessário”, sublinha Ângelo Fernandes. Quanto mais se conhecer sobre o assunto, afirma, “mais estamos a dar ferramentas à família para prevenir, detectar situações ou receber uma partilha”.

A mudança também deve passar pelas escolas, onde nas acções de formação os técnicos da Quebrar o Silêncio identificam um ambiente de troça sobre estes assuntos, com muito desconhecimento sobre as formas de abuso e alguns mitos, como a ideia de que um rapaz não pode ser violado ou que existe uma “violação boa” quando o rapaz é violado por uma mulher.

Ângelo Fernandes sente que é preciso quebrar os estereótipos relacionados com uma visão tradicional da masculinidade. Para o técnico, prevalecem ainda “ideias erradas de que o homem tem sempre que saber se proteger, e se não souber se defender é menos homem, tem que saber resolver os seus problemas, não pode procurar apoio, tem que saber arranjar estratégias”. A percepção dominante, afirma, é que “um homem que procure apoio está a falhar”.

Recomenda, por isso, que o tema seja tratado com respeito, partindo do princípio que não sabemos que tipo de história de violência as pessoas à nossa volta podem ou não ter sentido. “Precisamos de perceber que pode ser um dos nossos amigos, o nosso irmão, o nosso pai, alguém da nossa família. Quando há estas conversas que desvalorizam, que fazem troça, que antagonizam, estamos a dizer no fundo ao sobrevivente [que silencia]: comigo não podes contar.”

Em 2018, a Quebrar o Silêncio viu duplicar não apenas o número de homens atendidos, mas também de familiares e amigos que procuram a associação para saber como lidar com pessoas que tentam superar o trauma. Perguntamos à psicóloga Cláudia Caires como lidar com estas situações. “Aceitação, sempre”, responde prontamente. No caso de crianças, há uma certa tendência a olhar para as tentativas de denúncia como estar a chamar à atenção, de ter sido algo da sua imaginação, ou mesmo induzido por um adulto mal intencionado. Contudo, a psicóloga alerta que “é preferível não dizer nada do que contestar” e dar à vítima a oportunidade de ser ouvida e levada a sério. Um dos objectivos da associação para este ano é promover mais reuniões com pais e mães para que estejam mais atentos e sensíveis aos sinais das crianças.

E se um amigo, já adulto, lhe disser que sofreu um abuso? Mostre-se disponível para escutar, que está lá para o apoiar, deixe claro que a pessoa não está sozinha, reforce que a culpa não é sua, sugere Ângelo Fernandes. O fundador da Quebrar o Silêncio reforça ainda a importância de respeitar o tempo da pessoa, não forçar partilhas. “Se essa pessoa demorou 20, 30, 40 anos a partilhar essa história, não foi fácil.” E se tiver uma reacção que acha que foi negativa para a pessoa? “Não estamos preparados para uma situação de abuso sexual, e podemos não ter a melhor reacção”, salienta Cláudia Caires. Nesses casos, ainda é possível voltar atrás e mostrar apoio. “Cada um deles sente-se muito sozinho e isolado na sua história. E ao dizer-lhe ‘não estás sozinho, estou aqui, compreendo e tu não tiveste culpa’ quebra logo um pouco esse sentimento de solidão e ajuda-os a partilhar e a começar o seu processo”, apela a psicóloga.

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