A ilusão das elites

A questão das elites, tão apta a alimentar uma indústria do ressentimento, foi convocada há dias pelo Presidente da República, numa frase em que explicitava a sua prática e a sua noção de — chamemos-lhe assim - democracia compassiva. O Presidente limitou-se a pronunciar a palavra “elites” como se fosse o nome de uma evidência, quando na verdade ela arrasta consigo uma problemática interna que não tem um momento de paz: as elites são Deus e o Diabo, o remédio e o veneno. E podem ser isto tudo para a mesma pessoa, ao mesmo tempo, no mesmo discurso. Na circunstância, Marcelo Rebelo de Sousa, o nosso Presidente termostato, designou as elites como um centro de gravidade que o atrai apenas mediatamente, em contraste com a sua relação imediata (e que já vem de longe, acrescentou ele) com o povo.

O conceito de elite e uma correspondente teoria das elites têm o seu autor canónico: o sociólogo e economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923). A frase mais citada da sua análise social e histórica dessa categoria plural — “elites” — é aquela em que define a história como “um cemitério de aristocratas”. Ele resumia assim a sua ideia de que aqueles que num determinado momento concentram os privilégios da riqueza, do poder e do prestígio, por posição que lhes foi outorgada ou por terem alcançado o posto mais elevado no seu ramo de actividade, estão condenados à caducidade e a serem substituídos por uma nova elite que, por sua vez, vai ter o mesmo destino, quando já estiver prisioneira dos seus hábitos. A tese central desta teoria é a de que o equilíbrio social é assegurado pela circulação das elites. E a teoria da história que lhe corresponde é a de que esta é movida por uma minoria de homens notáveis, de “génios”. Pareto via esta circulação de minorias como uma prova de vitalidade das forças sociais, como uma lei de auto-organização da sociedade civil, decalcada dos ciclos biológicos. Na democracia, pelo menos enquanto ideal, não há nenhum indivíduo, nenhuma comunidade, nenhum lobby, que possua uma vocação privilegiada para o exercício do poder. Não deixa de haver elites, mas assegura-se o princípio da produção democrática das elites. Na queixa, actualmente muito repetida, de que as elites (e muito especialmente as elites políticas) são medíocres, é fácil descortinar, muitas vezes, a nostalgia de uma concepção da história fixada nos “grandes homens”.

Que desconfiança, que confissão implícita a do Presidente cyber-simpático quando fala do seu acesso não directo às elites? Trata-se desse sentimento hoje tão partilhado de que está viciada a máquina da produção democrática das elites e esse é um dos factores do mal-estar da democracia. Não é que se tenha regressado exactamente à lei da sucessão de Pareto, ao ciclo das vacas gordas e das vacas magras. Mas há uma nova realidade que veio introduzir uma nova complexidade no conceito de elite. Trata-se de uma ficção estatística político-mediática a que podemos chamar o “homem médio”, com os seus tiques identificáveis, um conceito que permite injectar, à escolha, uma autoridade moral também estatística, que se legitima na visibilidade, no contemporâneo “agir comunicacional”. As elites, aquilo que continuamos a designar assim, já não são formadas por aqueles que produzem diferenças, mas pelos que asseguram o consenso. As elites são consensuais. Quando o Presidente diz que escolheu em primeiro lugar uma comunicação directa com o povo para só depois chegar às elites, nós não sabemos a que elites se refere (Pareto não deixou em silêncio o facto de haver uma pluralidade categorial de elites). Mas se todos nós fomos levados a pensar imediatamente na elite política e na elite económica, na aliança entre ambas, isso mostra que se concretizou uma estabilidade máxima (com que sonhou, aliás, Pareto) a partir do momento em que a política se tornou uma espécie de fotocópia da economia. O Presidente teve vontade de mostrar distância em relação às elites por fidelidade à sua democracia compassiva, em que todos somos igualmente irmãos e sofredores? Talvez esse seja um gesto equivocado de quem está afinal tão perto da elite consensual que não está na melhor posição para perceber que o conceito de elite só pode ser entendido como a ilusão de uma época que já não é a nossa.

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