Afinal, o PCP é que tem razão?

Sabemos porque é que o Estado Novo não gostava de voto secreto e que o voto só era secreto na lei. Assim se garantia a paz e tranquilidade.

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Para meu espanto, dentro do PSD — que é o maior partido da oposição e foi Governo oito vezes — há quem acredite que votar de braço no ar tem a ver com coragem.

Coragem? Visto ao contrário, isso seria dizer que o voto secreto tem a ver com cobardia. É estranho ouvir isto em 2019 porque desde o século XIX que é aceite como bom senso elementar que o voto secreto não tem nada a ver com o carácter das pessoas, mas sim com a liberdade. Evita represálias, constrangimentos e amuos, e dá paz de espírito.

Nos últimos 40 anos, não me lembro de ver ninguém no PSD dizer que os comunistas eram corajosos porque votavam de braço no ar. Pelo contrário. Só me lembro de o braço no ar ser a prova de que o PCP era antidemocrático.

O consenso tem sido tal que, em 2003, quando a nova Lei dos Partidos Políticos foi aprovada, substituindo a de 1974, a maioria achou que era boa ideia tornar obrigatório o voto secreto nos partidos. Incluindo o PSD.

O Presidente da República, o socialista Jorge Sampaio, teve dúvidas e pediu a opinião do Tribunal Constitucional (TC). Devem lembrar-se da pergunta: obrigar as eleições partidárias a serem feitas por sufrágio pessoal e secreto viola a Constituição?

Dizia Sampaio que “um dos aspectos mais delicados” da democracia “tem sido a dificuldade em compatibilizar o princípio da autonomia e liberdade de organização interna dos partidos com o princípio da sua necessária democraticidade”.

O que fazer com estes dois interesses antagónicos? A Constituição prevê a liberdade de associação, mas exige que os partidos apliquem “os princípios da transparência, organização e gestão democráticas”. Não é fácil.

Se um partido tem “liberdade”, decide como é que os membros votam. Mas se um partido tem “gestão democrática”, elege com voto secreto porque esse é o tipo de voto que a democracia diz que é o mais democrático.

Como é que o TC resolveu o dilema? Disse que os partidos são associações de natureza privada, mas “de interesse constitucional”.

Por causa desse “interesse constitucional”, a lei trata os partidos como “associações” diferentes das outras. Um partido político não é uma associação de vizinhos. Ambos são associações de cidadãos, mas ao contrário de uma associação de padeiros ou de surfistas, os partidos não podem fazer tudo o que lhes apetece. Têm restrições em relação aos objectivos ideológicos e programáticos, ao nome, ao emblema e até à filiação (ninguém pode estar inscrito simultaneamente em mais de um partido). Também por serem associações de “interesse constitucional”, os partidos recebem apoio financeiro do Estado.

Em 2003, o TC concordou que é difícil “harmonizar dois princípios quase antagónicos”, mas concluiu que obrigar os partidos a terem eleições com voto secreto não viola a Constituição. Optimista, o TC aproveitou para ser pedagógico: “O sistema de sufrágio secreto oferece indiscutivelmente um maior grau de autenticidade e de verdade do voto […] e acrescenta genuinidade democrática à participação dos partidos na vida política.” Numa frase mais curta: o voto secreto é mais autêntico, mais verdadeiro e mais genuíno.

Paulo Mota Pinto, na altura juiz do TC e hoje apoiante de Rui Rio e defensor do voto com braço no ar, votou vencido. Explicou que não era contra o voto secreto e frisou que exigir o voto secreto aos partidos era uma forma de “melhorar a [sua] democracia interna”. O problema era outro. Mota Pinto é contra impor-se o voto secreto a todas as eleições internas dos partidos. Chamou-lhe o problema do “excesso”. Para ser claro, Mota Pinto concretizou o que o preocupava: “Eleições para organismos não directivos e locais, como a eleição, num plenário de militantes, de um conselho ou comité consultivo, ou, mesmo, de um gabinete de estudos concelhio ou de uma comissão para elaboração de propostas eleitorais ou para estudo de um determinado problema ou estratégia concretos.”

Mota Pinto não estava preocupado com a imposição do voto secreto na eleição do líder ou em moções de censura contra o líder nacional. Estava preocupado com “organismos não directivos e locais”.

Dois problemas: o conselho nacional do PSD — no qual os apoiantes de Rui Rio querem uma votação de braço no ar — é o oposto. Como o nome indica, é um órgão directivo nacional. Além disso, tem poderes executivos fortes. Segundo problema: porque não ter eleições secretas a nível local? Porquê sermos menos exigentes ao nível das juntas de freguesia se acreditamos que o voto secreto é melhor para a democracia? Ou nos bairros as pessoas são mais corajosas do que nos órgãos nacionais?

Sabemos porque é que o Estado Novo não gostava de voto secreto e que o voto só era secreto na lei. Para evitar surpresas, na administração pública os “chefes” recolhiam os votos dos funcionários e iam eles colocar os boletins nas urnas. Assim se garantia a paz e tranquilidade. Na lógica salazarista, evitava-se assim perseguir militantes sonsos que diziam uma coisa mas votavam outra.

Além da “coragem de dar a cara”, os aliados de Rui Rio usam outro argumento em defesa do voto de braço no ar: é assim que se vota no Parlamento, ou seja, “os deputados são chamados um a um para dizerem que sim ou que não”.

É interessante ver como de repente políticos experientes esquecem a diferença entre um militante de um partido e um deputado da República. É simples: os deputados não estão na Assembleia porque querem. Estão lá porque foram eleitos e por isso têm de responder perante os seus constituintes. Se não soubermos como é que os deputados votam, não podemos fiscalizar a sua acção. E a sua acção é feita em nome dos eleitores. Se um deputado vota ao contrário daquilo que defendeu na campanha, vai ter de dar explicações aos eleitores. Eu sei que isto não é a América, mas os deputados também “vão a casa” aos fins-de-semana e falam com as pessoas que os elegeram, mesmo que indirectamente.

O voto de braço no ar é antidemocrático, não garante a liberdade, cria constrangimentos — e se eu quiser mudar de decisão no último segundo? — é sinal de fraqueza e de medo de perder. Querer o braço no ar não é querer coragem. É querer impor disciplina e impedir a contestação interna.

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