Os filmes perdidos estão na nossa cabeça

Marilyn Monroe nua à beira de uma piscina, Bárbara Virgínia, a realizadora portuguesa de uma única obra... há filmes inacabados, sobreviventes, que chegaram até nós apenas sem som, com poucas cenas. Sábado, em Estoi, a segunda sessão do Vídeo Lucem retira das sombras filmes (quase) perdidos.

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No ecrã montado no antigo armazém da Conserveira do Sul, no centro de Olhão, projecta-se uma Lisboa a preto e branco, envolta no nevoeiro e filmada a partir de um barco no Tejo, no qual uma figura misteriosa, capa negra e mascarilha a esconder-lhe o rosto, navega de um lado para o outro com uma missão, igualmente misteriosa, de esconder documentos secretos numa bóia no meio do rio.

O filme, de 1919, é de José Leitão de Barros e poucas vezes foi visto. Dificilmente poderá ser considerado um filme, dado que o próprio realizador terá mostrado o desejo de que aquelas imagens nunca fossem mostradas. O Homem dos Olhos Tortos tornou-se, possivelmente, o mais famoso filme inacabado português.

Recentemente, a Cinemateca restaurou o material existente, juntando todos os takes de cada uma das cenas filmadas e foi esse “filme” que abriu, a 15 de Dezembro, a 3ª edição do Vídeo Lucem, festival de cinema em espaços inesperados de diferentes localidades algarvias, integrado no programa Algarve 365, e que se prolonga até 17 de Maio.

A história que Leitão de Barros se propôs filmar em 1919 tinha como base o folhetim O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho, de Reinaldo Ferreira, o Repórter X, publicada no jornal O Século entre 1917 e 1918. Tratava-se de uma história cada vez mais rocambolesca à medida que se ia desenrolando, com espiões, roubos de documentos secretos, encontros em locais do bas-fond, com personagens duvidosas, perseguições em túneis, e até uma mulher de rosto coberto por um véu negro.

Na folha de sala que acompanhou o visionamento, Tiago Baptista, director do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) da Cinemateca, explica que esta “intriga de mistério” com um vilão chamado Waldemar (o homem da mascarilha e dos olhos tortos), uma quadrilha de espiões alemães e “inesperadas reviravoltas finais, muito ao estilo dos filmes de [Louis] Feuillade [“a grande referência europeia do género”, autor de Les Vampires (1915) e Fantômas (1913-14)] e também dos folhetins de Gaston Leroux”. Se não tivesse ficado inacabado, o que se ficou a dever a falência da produtora Lusitania Film, este filme teria sido o primeiro (e único) português directamente inspirado naquele género, escreve Tiago Baptista.

Assim, o que resta é um conjunto de imagens que revela “uma representação cinematográfica inédita de Lisboa, à imagem das cidades imaginadas dos serials franceses e do bas-fond literário e jornalístico português, cenário de perseguições, raptos, chantagens, bóias-correio e seduções hipnóticas e onde personagens mascaradas ou disfarçadas se moviam entre as tabernas da Mouraria e os cafés do Chiado, entre os arredores ermos de Lisboa e subterrâneos imaginários (filmados no interior do aqueduto), entre a zona portuária e prédios de luxo das Avenidas Novas.”.

Porque o visionamento de um filme incompleto pode ser uma experiência difícil, O Homem dos Olhos Tortos é acompanhado por quadros com a explicação do enredo (que para o final se torna verdadeiramente surreal) e, na sessão do Vídeo Lucem, com música, tocada ao vivo, com a voz de Salvador Sobral e o piano de Júlio Resende.

“Esta é quase uma experiência de anti-cinema”, declara Sérgio Marques, um dos programadores do Vídeo Lucem, iniciativa do Cineclube de Faro integrada no programa 365 Algarve. “É o contrário do cinema, é uma narração em que se repete a acção, e que tem um texto imenso e denso.” Cada um dos filmes escolhidos representa uma experiência diferente, mas a ideia por trás é a mesma, resumida assim num texto de apresentação: “Ao espectador, o que se pede é que sonhe, que imagine aquilo que não vê, aquilo que não se dá imediatamente a ouvir ou o que ficou por acabar. Dessa maneira, passará a ser parte desse filme, nesse irrepetível momento em que estes filmes voltam a ganhar vida e são, uma vez mais, em novos contextos artísticos e de exibição, motor de criação.”

Fatalidade

Este fim-de-semana acontece a segunda sessão do Vídeo Lucem, desta vez com três filmes e acompanhamento musical “entre a música clássica, o jazz e o fado”, por três artistas, Filipe Raposo, Rita Maria e Ricardo Ribeiro. A ideia de fatalidade une as três obras que serão exibidas sábado às 21h30 no Palácio de Estoi (Faro).

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Os músicos Ricardo Ribeiro, Filipe Raposo e Rita Maria foram desafiados pelos organizadores do Vídeo Lucem a criar o acompanhamento musical para a sessão de amanhã no Palácio de Estoi, que, sob o tema da fatalidade, apresentará Something’s Got to Give, de George Cukor, Três Dias Sem Deus, de Bárbara Virgínia e O Fado de Maurice Mauriaud Pedro Soares/Estelle Valente/MARCIA LESSA

A primeira é Something’s Got To Give, de George Cukor, também inacabada, porque depois do despedimento de Marilyn Monroe (atrasos crónicos e faltas de comparência na rodagem e rushes que mostravam uma interpretação que os estúdios, assustados, consideraram errática) a actriz morreria quando tudo levava a crer que a 20th Century Fox pretendia voltar a contratá-la. Os 37 minutos que restaram com takes de Marilyn e, sobretudo, cenas numa piscina, acabariam por ficar mais famosas do que o filme acabado.

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Something’s Got To Give, de George Cukor: após o despedimento de Marilyn Monroe (faltas de comparência na rodagem e rushes que mostravam uma interpretação que os estúdios, assustados, consideraram errática) a actriz morreria quando tudo levava a crer que a 20th Century Fox iria contratá-la de novo

Segue-se Três Dias Sem Deus, o único filme de Bárbara Virgínia, realizadora portuguesa durante décadas esquecida. O filme, de 1945 e que foi ao Festival de Cannes na sua primeira edição, no ano seguinte, viria a ser destruído pelo fogo, tendo sobrado apenas os 22 minutos (só imagem, sem som) que serão exibidos no Palácio de Estoi. Sérgio Marques descreve-o como um filme “muito fora da caixa”: a história de uma professora que chega a uma aldeia durante uma ausência do padre e entra em choque com as superstições locais. “Ela fica alojada numa casa que é um castelo e o filme é todo em torno da ideia de fantasmas, sombras, muito expressionista.”.

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Três Dias Sem Deus (1945), do qual apenas 22 minutos sobreviveram ao fogo (e sem som), é o único filme da portuguesa Bárbara Virgínia e representou Portugal no Festival de Cannes em 1946. É a história de uma professora que enfrenta as crenças irracionais de uma aldeia da qual o padre se ausentou durante três dias

O terceiro e último é O Fado (1924), curta-metragem muda de Maurice Mauriaud, realizador francês que se ocupa aqui da canção nacional portuguesa partindo do quadro de José Malhoa com o mesmo nome.

Igrejas e cineclubistas

A ideia inicial para esta terceira edição do Vídeo Lucem não era mostrar filmes inacabados. Nas duas edições anteriores, o projecto, que começou respondendo a um desafio do 365 Algarve para a região ter programação cultural feita por agentes locais durante a época baixa, passara por mostrar cinema em igrejas e, em muitos casos, organizar debates no final.

“Tivemos sorte porque o bispo do Algarve acolheu bem a ideia, mas cada padre podia decidir aceitar ou não ter cinema na sua igreja”, recorda Sérgio. “Alguns disseram que sim, outros disseram que não, e houve alguns que odiaram a ideia, mas acabámos por fazer em 22 igrejas no primeiro ano. A única coisa que nos disseram foi para não trazer filmes que não fizessem pensar, ou seja, cinema mais comercial, e para não mostrar cenas de sexo.”

Apresentaram O Sabor da Cereja de Abbas Kiarostami, Simão do Deserto, de Luis Buñuel, O Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira, misturaram frequentadores da igreja com cineclubistas e criaram debates sobre temas como o suicídio ou a vocação religiosa. “Foi uma experiência cineclubística engraçada”, diz Sérgio.

No segundo ano, focaram-se no cinema mudo e na música como acompanhamento, convidando artistas a criar composições para os filmes. Este ano quiseram inovar e surgiu a ideia dos filmes inacabados. Um deles, que será exibido a 17 de Maio na Parada do Quartel Militar em Tavira, é The River, de Frank Borzage, “parcialmente perdido, uma história erótica e romântica, com cenas muito bonitas”, descreve o programador. “O que se fez, no lugar das cenas perdidas, foi colocar um cartão a descrever o que (não) estamos a ver. Somos obrigados a construir essas cenas na cabeça e isso é o que eu queria que fosse a experiência deste ciclo, as pessoas fazerem o seu próprio cinema.”.

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The River, de Frank Borzage, tinha sido dado como totalmente perdido mas foi recentemente redescoberto e restaurado, apesar de faltarem ainda cenas (que serão explicadas por cartões escritos). Trata-se de uma história de iniciação ao amor entre um jovem viajante e uma mulher experiente

Entre os filmes escolhidos estão obras mais conhecidas e outras desconhecidas. A cada artista convidado para acompanhar foi proposto um filme, mas o formato do acompanhamento depende das ideias de cada um. A 15 de Março, no auditório do Museu de Portimão, Flávia Gusmão vai estar com o filme Heróis do Mar, de Fernando Garcia. “É um filme sobre a pesca do bacalhau, que perdeu o som, há imagens mas não há faixa áudio. A Flávia está a fazer um trabalho com as comunidades, vai fazer gravações com os ranchos folclóricos de Portimão e com os pescadores.”

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No caso de Heróis do Mar, de Fernando Garcia, o filme está completo mas o som perdeu-se e a sonoplastia será feita ao vivo, por Flávia Gusmão, a partir do guião original. É um retrato da vida dos pescadores de bacalhau. Tem António Silva e Isabel de Castro em papel duplo, fazendo de homem e de mulher

Ana Brandão, que trabalhará em dupla com João Paulo Esteves da Silva, fará algo de semelhante com Um Grito na Noite, de Carlos Porfírio, apresentado a 12 de Abril no Espaço Guadiana em Alcoutim, uma história que tem precisamente a ver com o universo do contrabando que marcou a existência de Alcoutim durante décadas.

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Um Grito na Noite, de Carlos Porfírio, também tem o som perdido e terá sonoplastia ao vivo criada por Ana Brandão e João Paulo Esteves da Silva. O filme mostra a vida na zona de Alcoutim, junto à fronteira com Espanha, e as vissicitudes dos que se dedicavam ao contrabando. João Perry aparece muito jovem

Outra curiosidade, que passará no dia 23 de Fevereiro no Cineteatro de São Brás de Alportel, é Charlotim e Clarinha, de Roberto Nobre (acompanhamento ao vivo por Francisca Cortesão e Sérgio Nascimento). São apenas 16 minutos de um filme mudo, assinado por um realizador natural de São Brás de Alportel, criador da primeira produtora de cinema do Algarve, a Gharb Film, que existiu apenas para este sonho falhado de fazer uma espécie de Charlot à portuguesa.

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Com Romy Schneider como protagonista, L’Enfer (1964) é um filme inacabado do francês Henri George-Clouzot. Serge Reggiani é aqui o marido patologicamente ciumento de uma mulher jovem e bonita. As imagens que restam (15 minutos) incluem testes com a actriz, testando diferentes soluções de filmagem

No mesmo dia passam mais dois filmes que, para os organizadores, “representam a vontade da criação e as vontades ao redor dessa criação”: L’Enfer (1964), de Henri George-Clouzot, com Romy Schneider e Serge Reggiani (com uma série de testes-experiência para um filme que “poderia ter sido uma obra prima da história do cinema e ficou reduzido a uma imensidão de bobines de inovações cinematográficas”). E ainda It’s All True (1943), de Orson Welles (acompanhamento ao vivo de Bruno Pernadas). Filmado na América do Sul, conta a história de quatro pescadores que viajaram numa jangada do Ceará até ao Rio de Janeiro para pedir ajuda para o seu povo. O realizador convidou os quatro homens para fazerem os próprios papéis mas durante as filmagens aconteceu um acidente que acabou por matar líder do grupo. Essa morte, à qual se somaram problemas financeiros dos estúdios, ditou o fim do projecto, que se transformou “para sempre num filme fantasma que assombrou Orson Welles”.  

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It’s All True é um filme inacabado de Orson Welles filmado na América do Sul e com três histórias. A que será mostrada é Quatro Homens Numa Jangada, o relato da epopeia de quatro pescadores que se tornaram heróis. Welles tornou-os protagonistas da sua própria história mas um acidente nas filmagens matou um deles

Cultura na época baixa

O objectivo do 365 Algarve, lançado em 2016 e financiado pelo Turismo de Portugal com 1,5 milhões de euros, é, para além de aumentar a oferta cultural na região durante a época baixa, combatendo a sazonalidade, incentivar a produção local e levar os algarvios a deslocar-se a outras localidades para assistir aos diferentes eventos (a programação inclui teatro, dança, passeios temáticos ligados ao património, concertos, etc.) — e esse, diz Anabela Afonso, antiga directora do Teatro Municipal de Faro e comissária do programa, tem sido um objectivo plenamente atingido.

“As pessoas de Tavira vão aos eventos de Monchique e Aljezur, as de Olhão vão aos de Faro”, afirma Anabela, salientando o exemplo do Festival do Contrabando de Alcoutim, caso de sucesso num dos concelhos mais desertificados do país que nos dias do evento recebe “à volta de vinte mil visitantes, para além de toda a dinâmica dos envolvidos, actores contratados, pessoas que fazem a animação, etc.”.

Nesta terceira edição (que teve 49 candidaturas, tendo sido aprovados 20 projectos) o regulamento sofreu alterações. “Privilegiámos projectos que tivessem a possibilidade de circulação no território”, explica, e incentivou-se a ligação ao turismo. No caso do Vídeo Lucem, por exemplo, isso passa por uma visita, ao final da tarde, por Olhão, guiada por Jorge Carrega, historiador local que se dedica também ao estudo do cinema. É ele quem nos leva pela Av. da República abaixo para nos contar como o cinema chegou à cidade.

“Esta avenida mostra a prosperidade que Olhão começou a viver na segunda metade do século XIX, início do século XX, graças à indústria conserveira”, relata Jorge. “Chegaram a existir 80 fábricas de conservas no período após a I Guerra.” Paramos um momento antes do edifício da Sociedade Recreativa. “Aqui ficava o primeiro verdadeiro cinema de Olhão, o Cinema-Teatro. O cinema chega ao Algarve em 1898, mas demora dez anos a vir de Faro para Olhão. Em 1908 realiza-se a primeira sessão em Olhão, no edifício, já destruído do Grémio Olhanense. E em 1910 chega o Salão High-Life, um cinema itinerante, numa tenda, vindo de Faro, onde entretanto abriam as primeiras salas.”

O entusiasmo dos olhaneneses foi tal, prossegue Jorge, que dois anos depois abre o Cinema-Teatro e, em 1915, uma segunda sala, o Salão Apolo. “Imediatamente se criou uma rivalidade. Mas o Apolo tinha uma vantagem em relação ao Cinema-Teatro: um quarteto de músicos a acompanhar enquanto o outro tinha só um pianista.”

As décadas passaram e nos anos 40 a introdução de legislação mais exigente levou a que o Salão Apolo fosse desactivado por já não ter condições. Desaparecido o rival, o Cinema-Teatro manteve-se como a única sala de Olhão até à década de 70. A volta pela cidade e pelas suas histórias termina no restaurante Bioco para um jantar à volta do atum, do bife à muxama, passando pelas conservas — numa parceria do Vídeo Lucem com a Eating Algarve Food Tours.  

O atum ajudou a estabelecer outra ligação. Seguimos para o antigo armazém da Conserveira do Sul transformado por uma noite numa sala de cinema a fazer voltar a memória desses cinemas do início do século XX, que mais pareciam saloons do Velho Oeste. Aí, perante 350 pessoas, e antes de O Homem dos Olhos Tortos, foi projectada uma curta-metragem, também de Leitão de Barros, A Pesca do Atum (1939), filme para divulgar as conservas portuguesas no estrangeiro.

Só depois surgem no ecrã essas imagens que podiam ter ficado perdidas para sempre mas que renascem para nos fazer pensar sobre o que é realmente um filme. “Faz sentido que um filme fique para sempre guardado num arquivo?”, interroga-se Sérgio Marques. “O filme morre e passa a ser só estudado, não é visto? E um filme sem banda sonora, não é um filme?.”

O objectivo do Vídeo Lucem é que “as pessoas tenham a oportunidade de estar ao lado de obras que não conseguiriam ver de outra maneira”. Ao mesmo tempo “estamos a exigir-lhes uma experiência arriscada, que vai para além do cinema, estamos a pedir-lhes para construírem um bocadinho do filme na cabeça”. Vídeo Lucem quer dizer “vejo a luz”. “A partir daí tudo é possível. Luz é cinema.”

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