SNS: uma causa nacional

O SNS não pode continuar a ser drenado pelo sector privado, até não ser mais do que um serviço residual.

Fui um dos subscritores da primeira proposta sobre o SNS apresentada pelo PS na AR, tendo à cabeça a assinatura de António Arnaut, seguida, entre outras, pelas de Mário Soares e Salgado Zenha. Estive com António Arnaut até ao fim da sua vida na luta pela defesa do SNS, a maior reforma social da nossa democracia e uma causa de todos os que têm uma visão humanista e solidária. Prometi-lhe que, dentro das minhas poucas possibilidades, tudo faria para o PS cumprir a sua obrigação histórica: uma nova Lei de Bases que restitua ao SNS os seus princípios fundadores e constitucionais. Direito à saúde para todos, garantido pelo Estado através do SNS, que não pode ser colocado em pé de igualdade com o sector privado e o sector social. Um SNS universal, de gestão integralmente pública, que se articule com as iniciativas privadas e sociais em termos de complementaridade e não de concorrência.

O SNS não pode continuar a ser drenado pelo sector privado, até não ser mais do que um serviço residual ou, como escreveu Arnaut, “um serviço público de índole caritativo para os mais pobres.” Criado por um despacho ministerial de 29 de Julho de 1978, “que tornou universal, geral e gratuito o acesso a cuidados de saúde em todas as unidades da República”, o SNS viria a ser institucionalizado pela Lei 56/79, com os votos contra do PSD e do CDS. O SNS não é um projecto ideológico, nem é património de nenhum partido, pertence ao país e aos portugueses.

 O professor Manuel Antunes, que nunca foi socialista, mas é um distintíssimo profissional de saúde, escreveu: “Temos um sistema público de saúde de cuja filosofia e princípios muito nos devemos orgulhar.” Por isso, como alertou Arnaut no seu livro sobre os 30 anos do SNS, esses princípios não podem ser pervertidos. Nem com o recurso a um sistema de seguros-saúde, nem com um sistema de co-pagamento, nem com as parcerias público-privadas, nem com outros tantos esquemas que visam distorcer o modelo constitucional e abrir caminho à privatização. No livro Salvar o SNS, de António Arnaut e João Semedo, que apresentei em Coimbra, apontam-se os três momentos legislativos que abriram a porta para o assalto ao SNS.

- A revisão constitucional de 1989 (contra a qual votei) acabou com a gratuitidade e introduziu o conceito de um SNS tendencialmente gratuito. A criação das taxas moderadoras no governo de Durão Barroso iniciou o pagamento dos cuidados de saúde no SNS.

- A Lei 48/90 consagrou o conceito de concorrência entre o SNS e os operadores privados e atribuiu ao Estado a responsabilidade de apoiar a iniciativa privada na saúde. Foi a subversão constitucional do SNS.

- A transformação em 2002 dos Hospitais públicos em entidades empresariais foi outro duro golpe no SNS. Segundo João Semedo, “o mérito avaliado e definido pela carreira cedeu lugar ao compadrio e ao favoritismo. Os hospitais-empresa destruíram as carreiras, os contratos e os direitos laborais, semearam a precariedade e a desmotivação”.

Arnaut sempre sublinhou que a estabilidade nas carreiras, a sua dignificação e progressão, são decisivas para a salvação do SNS. Acresce que o SNS perdeu muitos daqueles que foram os seus pioneiros e construtores. Uns por se terem reformado, outros porque foram para o privado. Faltam orientadores para os jovens médicos. Além do sub-financiamento crónico. Eis o que não pode ser ignorado e tem de ser invertido, dignificando as carreiras e melhorando a remuneração. Uma nova Lei de Bases, mas não uma Lei qualquer. Não um remendo nem um arranjo táctico de conveniência. Mas uma Lei que recupere os valores perdidos. Para acabar com a promiscuidade, defender a transparência, definir regras claras entre o SNS e o sector privado. Como escreveu D. Januário Torgal Ferreira: “… a mescla do público e do privado tem de ser sanada nos seus equívocos mediante o delimitar de fronteiras precisas e de cooperação complementar.”

 Eis conceitos que gostaria de ver, sem ambiguidades, numa nova Lei de Bases. Para os socialistas é uma questão de honra. Devemos a António Arnaut a criação do SNS, que representa um salto qualitativo na nossa história política e social. O SNS tem de estar acima de preconceitos e sectarismos. E não pode ser capturado por interesses particulares, por mais poderosos que sejam e por mais pressões que façam contra o Serviço Público.

Não se podem esquecer os muitos benefícios que o SNS trouxe à população. Devem-se-lhe a fantástica diminuição da taxa de mortalidade infantil, os serviços de excelência dos Hospitais Públicos, os avanços alcançados em áreas como a medicina cardiovascular, os transplantes, a medicina materno-infantil, o trabalho de formação e investigação e o aumento da esperança de vida. Mesmo os cuidados básicos, a prevenção e vacinação, conseguiram avanços extraordinários. Nada disso pode ser esquecido. E é por isso que é preciso salvar o SNS.

Num dos seus últimos textos, António Arnaut lamentou o tempo perdido e manifestou a sua esperança de que todos os partidos dessem o seu contributo para uma nova Lei de Bases fiel aos princípios fundadores do SNS. Ainda estou a ouvi-lo ao telefone: “Faz o que puderes pelo SNS.”

Foi o que tentei. Mas a responsabilidade é de todos. O SNS é uma causa nacional.

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