Álvaro de Campos e o politicamente correcto

Aos poucos apagamos a cultura e a identidade portuguesas, uniformizando mentalidades, modos de agir e pensar, de bom grado eliminando o original, o inovador, o chocante, o desafiador em nome do politicamente correcto, como se a miséria, a degradação, os abusos e a violência do ser humano sobre o ser humano nunca tivessem existido.

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LM miguel Manso - publico

A Porto Editora está envolvida em mais uma polémica depois do corte a tracejado de três versos da Ode Triunfal de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, cujo poema faz parte do manual escolar de Português do 12.º ano Encontros, adoptado por um total de 90 escolas.  Vítima do politicamente correcto, Fernando Pessoa anda às voltas no túmulo.

Quem se seguirá? Camões e a Ilha dos Amores? Decerto. Os livros de arte e as raparigas nuas de Rubens? Já está na lista e hoje em dia convém não ferir a susceptibilidade alheia sob pena de um processo em tribunal. 

Inevitavelmente coloco aqui questão: será o politicamente correcto mais importante que a cultura? Teremos o direito de reescrever a História por medo de represálias? Teremos todos perdido o bom senso juntamente com as noções de certo e errado no que toca ao nosso papel de educadores e formadores das gerações futuras?

Será do Pessoa a culpa de escrever em vernáculo, ainda para mais quando tal vernáculo incide sobre as relações entre adultos e menores, ou será antes a culpa de cada uma das escolas e respectivos corpos docentes pela escolha de tal manual? Do Pessoa não é de certeza, é de quem edita os livros e de quem os escolhe, é da editora e das escolas, é dos professores e de quem pretende (re)escrever o currículo ao ritmo do lápis azul da censura de outros tempos.

Aos poucos apagamos a cultura e a identidade portuguesas, uniformizando mentalidades, modos de agir e pensar, de bom grado eliminando o original, o inovador, o chocante, o desafiador em nome do politicamente correcto, como se a miséria, a degradação, os abusos e a violência do ser humano sobre o ser humano nunca tivessem existido. Ao apagar a história em nome do politicamente correcto arriscamo-nos a repeti-la.

Portanto, não à censura da alma e do corpo, não à mutilação das palavras e dos versos, tudo o que é pensado deve ser escrito, em nome do infinito, e só na liberdade podemos ser verdadeiramente maiores.

Voltando ao livro, entre o puritanismo e a ignorância venha o diabo e escolha. Já que o Pessoa levantava tantos problemas porque não outro poema ou outro autor ao invés da Ode Triunfal?

Para quem dedica parte da sua vida à escrita, não há nada mais triste para além do fuzilamento indiscriminado das ideias e das palavras, como se escrever fosse um crime e a censura o julgamento imediato, célere e cego, de quem escreve. Ninguém diz uma palavra, mas eu sei que fui julgado e condenado sem direito a defesa, a advogado ou tribunal. Não são precisos, basta o editor.

Os meus pêsames, por conseguinte, ao Pessoa, mas não só, a todos os portugueses. Hoje estamos mais pobres, e se assim é a nós o devemos. Eu, por mim, vou continuar a ler Pessoa, Álvaro, Alberto, Ricardo, mas não só, Peixoto, Agualusa, Lobo Antunes, Saramago, Zambujal, O’Neill, Herberto, entre tantos outros, com asneiras e sem asneiras, mas de preferência com, e tratando a vida sempre por tu num mundo onde o politicamente correcto não me chateie nem me diga o que é certo e errado que eu já sou crescidinho, muito obrigado. Quanto à nossa juventude, não precisa da vossa condescendência, foram os alunos que nos chamaram a atenção para a censura, foram os alunos que gritaram liberdade!

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