Três em cada quatro portugueses têm dificuldade em compreender informações sobre saúde

Situação piora com a idade. Ensinar os profissionais de saúde a comunicar com os doentes é fundamental. “Os médicos passam seis anos na faculdade a aprender a falar ‘medicalês’ e aprendem cerca de seis mil termos novos diferentes. Quando acabam o curso já não sabem falar com as pessoas", diz investigadora.

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Adriano Miranda

Se comer toda a embalagem de gelado quantas calorias está a consumir? Se lhe for permitido consumir 60 gramas de hidratos de carbono numa sobremesa, que quantidade de gelado pode comer? Estas são duas das seis perguntas que, acompanhadas de um rótulo fictício de gelado, compõem o Newest Vital Sign (NVS), o teste utilizado pela médica Dagmara Paiva e outros cinco investigadores para avaliar o nível de literacia em saúde dos portugueses. Conclusão: estima-se que 73% da população portuguesa entre os 16 e os 79 anos não saiba responder correctamente a questões como estas e que, por isso, tenha dificuldade em aceder, compreender e utilizar informação sobre saúde.

A situação piora com a idade. E, como seria de esperar, quanto menor for o nível de escolaridade, menos competências. Dados: na população entre os 16 e os 44 anos, a proporção daqueles que mostram níveis de literacia inadequados oscila entre os 62% e os 65% (as estimativas têm um intervalo de confiança de 95%). Essa percentagem vai aumentando e, na faixa etária entre os 65 e 79 anos, corresponde a 94% da população. Quanto ao nível de escolaridade, entre os que têm menos do que o 4.º ano, 97,5% têm um nível de literacia em saúde inadequado. Já entre a população com pelo menos uma licenciatura completa essa proporção desce para 44,5%.

“Pessoas com mais de 64 anos têm 21% maior probabilidade de ter limitações do que quem tem menos de 25 anos”, detalha ainda o estudo publicado no final de 2017 na revista Acta Médica Portuguesa e que faz parte da tese de doutoramento que Dagmara Paiva apresentou na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em Dezembro de 2018 (o foco principal da tese é a literacia nos cuidados aos doentes com diabetes tipo 2, mas a médica apresenta vários estudos de contexto). Já para quem tem um curso superior, a probabilidade de ter mais dificuldades em compreender conceitos sobre saúde é 50% inferior à de quem tem menos do que o 4.º ano. Não há diferenças de género.

Esta metodologia não avalia directamente a forma como os pacientes compreendem as informações que lhes são dadas em contexto clínico. Mas Dagmara Paiva explica que pode dar algumas pistas. “A penúltima pergunta do NVS é: ‘Suponha que é alérgico à penicilina, amendoins, látex e picadas de abelha. É seguro para si comer esse gelado?’. Aí a pessoa tem de conseguir perceber que um dos ingredientes do gelado é o amendoim e que não pode [comê-lo] e porquê. Dá para ter uma ideia de como é que são essas competências de uma pessoa em particular.”

O pequeno questionário foi aplicado em 2012 no âmbito de um inquérito nacional que tinha como objectivo perceber o grau de conhecimento da população sobre problemas como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, cancro e sobre comportamentos saudáveis. A amostra, representativa da população portuguesa, tinha 1624 pessoas. Entre os entrevistados, 79 não sabiam ler nem escrever, pelo que foram excluídos da análise. Sobram 1544 indivíduos na amostra final. Se a população que não sabe ler nem escrever fosse incluída nas estimativas nacionais então o nível de literacia inadequada em saúde seria ainda maior: 74,5%.

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Portugal atrás de Espanha e da Holanda

A metodologia tem limitações. O NVS, explica-se no estudo, “foi desenhado para avaliar competências individuais de compreensão de leitura e cálculo, uma pequena parte do conceito de literacia em saúde”. Mesmo assim, não é por isso que os seus resultados são menos importantes. “A avaliação das habilidades numéricas dos pacientes pode ter um papel fundamental na melhoria do uso apropriado de medicamentos e na prevenção de erros de dosagem, alinhando-se aos objectivos do Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados.”

Além disso, outras mais-valias são o facto de já ter sido usado noutros contextos, correlacionar-se bem com instrumentos mais complexos, ser visto como algo “aceitável” pelos pacientes e permitir comparações internacionais.

Em 2011, o NVS já tinha sido aplicado noutros países, no âmbito do Inquérito Europeu de Literacia em Saúde. A Holanda, onde só 23,7% dos entrevistados revelaram ter literacia inadequada em saúde, teve a taxa de sucesso mais elevada. Por outro lado, Espanha, onde se estima que 63,1% da população tenha este tipo de limitações, foi o país com piores resultados na altura. “Dada a proximidade entre educação e a componente de numeracia na literacia para a saúde, os resultados [distintos entre países] podem ser explicados pelas diferenças na educação”, explica o estudo.

A prevalência da falta de literacia em saúde estimada no âmbito deste estudo é superior aos 49% que outro grupo de investigadores estimou em 2016. Dagmara Paiva e os restantes autores explicam esta diferença: com o NVS “a numeracia é analisada objectivamente e esta é uma competência crucial para lidar com as exigências complexas da doença crónica”. O trabalho de 2016 avaliava o grau de dificuldade do paciente em realizar tarefas associadas a cuidados de saúde. Mesmo assim, “são complementares”, diz Dagmara Paiva.

Ensinar os profissionais de saúde a comunicar

Uma coisa é certa: a literacia inadequada em saúde é um problema em Portugal. E se a longo prazo a forma de melhorá-la é através do investimento na educação dos cidadãos, no imediato, atenuar os seus efeitos pode passar por “melhorar as competências de comunicação dos profissionais de saúde”, defende Dagmara Paiva. 

Outro dos trabalhos que integra a tese desta médica especialista em Medicina Geral e Familiar (são cinco no total) foca-se nos factores que facilitam e inibem a comunicação entre pacientes com diabetes tipo 2 e profissionais de saúde. E conclui que os doentes identificam a comunicação agressiva no consultório como uma “barreira à comunicação”, mas os profissionais encaram-na como um aspecto “facilitador” no sentido de apelar à mudança de comportamentos dos pacientes. O estudo baseia-se na entrevista a 33 utentes e a 12 profissionais de saúde.

“Não há nenhuma sociedade nem associação que dê recomendações para tratamento e gestão da diabetes tipo 2 que recomende comunicar de uma forma agressiva para assustar as pessoas. Todas as indicações são no sentido de usar técnicas de entrevista motivacional, ajudar os doentes a identificar as principais barreiras à mudança de comportamentos e, dentro do seu contexto de vida, tentar ajudá-los a decidir sobre as pequenas mudanças para melhorar a sua saúde”, nota Dagmara Paiva. Mesmo assim, “há muitos médicos” que utilizam a abordagem agressiva.

O problema está no ensino. “Na maioria das faculdades de medicina, o treino em comunicação ainda não faz parte do currículo [obrigatório]. É uma coisa que os próprios profissionais de saúde assumem que lhes faz falta”, nota a médica. “Os médicos passam seis anos na faculdade a aprender a falar ‘medicalês’ e aprendem cerca de seis mil termos novos diferentes. Quando acabam o curso já não sabem falar com as pessoas”, aponta. “As políticas de saúde têm mesmo de começar a investir nisso a sério.”

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