Software identificou George num aquário com uma centena de peixes

Investigadores do Centro Champalimaud juntaram algoritmos convencionais e inteligência artificial para criar um software chamado idtracker.ai que provou ser capaz de identificar um indivíduo num grupo com uma dimensão considerável.

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O programa identifica com nomes ou números cada um dos 100 peixes no aquário Francisco Romero-Ferrero

Mais difícil do que encontrar uma agulha num palheiro será identificar e distinguir cada uma das palhas nesse mesmo palheiro. Foi mais ou menos isso que a equipa de investigadores do Centro Champalimaud conseguiu fazer numa experiência que envolveu uma centena de peixes-zebra dentro de um tanque no laboratório. No artigo publicado esta segunda-feira na revista Nature Methods, os cientistas apresentam (e disponibilizam a outros investigadores) uma ferramenta de trabalho que promete ser muito útil para identificar e acompanhar indivíduos em grupos com um tamanho considerável. Aqui trata-se de um pequeno peixe a que chamaram George num cardume de uma centena, mas também poderíamos estar a falar numa pessoa no meio de uma multidão.

George é um peixe-zebra, um dos modelos animais mais usados em estudos de laboratório, sobretudo no campo da genética e da biologia do desenvolvimento. Estes animais brilhantes com umas listras ao longo do corpo medem pouco mais do que 20 milímetros e (não será nenhuma ofensa dizê-lo) parecem todos iguais. Agora imagine tentar seguir um peixe-zebra num aquário com uma centena para tentar perceber como se comporta enquanto se cruza e toca noutros peixes iguais a ele.

O exercício seria desumano, mas uma equipa de investigadores do Centro Champalimaud provou que este desafio pode ser resolvido com sucesso por um software. Chama-se idtracker.ai, o que desfazendo a sigla e traduzindo significa que temos um programa de identificação e rastreio com recurso a inteligência artificial. O software está apoiado também em algoritmos convencionais, aliás, começou por aí segundo explicou ao PÚBLICO Gonzalo de Polavieja, investigador principal do Laboratório de Comportamento Colectivo no Centro Champalimaud e o principal autor do artigo publicado na Nature Methods. “Em 2014 desenvolvemos um sistema que chamámos idtracker, mas tínhamos muitos erros porque quando eles se tocam e cruzam é muito difícil segui-los. A novidade agora é que temos um software que reescrevemos usando a inteligência artificial. Com isso, conseguimos uma identificação muito melhor. Assim, em vez de pequenos grupos podemos acompanhar grupos maiores.”

A primeira versão do programa já conseguia seguir e identificar dez peixes, com o upgrade da inteligência artificial a nova versão chega aos 100. O programa funciona através da análise das imagens registadas por uma câmara de vídeo e, segundo o artigo, a precisão é enorme. “Em mais ou menos uma hora, o idtracker.ai identifica todos e cada um dos 100 peixes-zebra que aparecem no vídeo, a cada momento, com quase 100% de precisão”, assinala o comunicado de imprensa. Gonzalo de Polavieja confessa-se surpreendido com os resultados: “Não acreditava que seríamos capazes de alcançar estes números. Foi uma surpresa. Pensava que não havia informação suficiente nas imagens.”  

Redes e limites

Além dos algoritmos, o idtracker.ai é composto por duas redes neuronais de aprendizagem profunda (em inglês, deep learning), simulações computacionais de redes de neurónios cerebrais que são capazes de aprender com a experiência. “Utilizando as imagens de vídeo dos peixes-zebra no tanque, a primeira rede na cadeia de processamento das imagens aprende a distinguir, ao nível de cada pequeno ponto nelas visível, aqueles que correspondem a apenas um animal e os que correspondem a vários. A partir dos resultados da primeira, a segunda rede neuronal aprende então a atribuir um nome (ou um número) a cada manchinha nas imagens que contém apenas um peixe”, explica o comunicado. E assim se concretiza um processo de identificação de cada um dos peixes que aos nossos olhos nada tem de diferente do outro que nada ao seu lado.

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Investigador Gonzalo de Polavieja Tor Stensola/Centro Champalimaud

Gonzalo de Polavieja dá um exemplo: “Se mostrarmos à rede [neuronal] uma parte do vídeo que nunca viu e lhe perguntarmos ‘quem é aquele?’, a rede irá atribuir correctamente um nome (ou um número) a esse peixe 99,997% das vezes.” O comunicado de imprensa brinca com o peixe-zebra. Fala do George e tenta distingui-lo dos seus “companheiros” de tanque, o Tom e outros 98 animais. Na imagem que acompanha o artigo, os peixes não têm nome mas números, mas isso pouco importa na tarefa de uma identificação de sucesso.

E qual é a utilidade de seguir um determinado peixe num grupo de uma centena? “Estamos a tentar perceber quais são as regras do processo da tomada de decisão em grandes colectivos e também como é que eles aprendem juntos”, explica o investigador. No artigo, relata-se ainda uma experiência num cenário de “luta”. “Também usámos para estudar lutas de peixes e tentar perceber como lutam, quais são as regras, como podemos descrever esse comportamento, mas essa análise faz-se com grupos mais reduzidos, de dois ou três indivíduos apenas”, disse ao PÚBLICO. Reduzir é fácil, no entanto, será que podemos aumentar o número de animais e manter a precisão na identificação? “Temos provas de que pode ser feito em grupos de 150, mas não estudámos ainda o quão grande pode ser esse grupo. Mas, para nossa surpresa, nos testes que já fizemos as redes conseguiam identificar em grupos de dez ou 150, não havia grande diferença.”

E nós? É possível encontrar o Wally?

Há pelo menos duas possíveis perspectivas “humanas” neste trabalho. A primeira tem a ver com os nossos limites e com o que nós (não) conseguíamos fazer sem este software. “Para o cérebro humano – ou mesmo para um programa de computador convencional –, seria impossível reconhecer cada indivíduo no meio de dezenas de outros muito parecidos”, refere o comunicado. “Daríamos em doidos a tentar”, acrescenta Gonzalo de Polavieja.

A segunda perspectiva tem a ver com a aplicação deste software nos humanos, ou seja, no trabalho de identificação de um indivíduo numa multidão. “Vamos por partes”, pede Gonzalo de Polavieja. “Primeiro, ainda não o tentámos. Portanto, não sabemos a resposta para isso. Mas imagine que fazemos experiências em laboratório com humanos semelhantes a estas que fizemos com os peixes. Imagino – sem as ter feito – que seria ainda mais fácil do que com os peixes, porque os peixes são muito parecidos uns com os outros. Mas, por outro lado, na natureza é diferente. Se pusermos humanos a mexer-se na rua estamos perante um problema mais difícil.”

Os próximos passos do trabalho não são na direcção dos humanos mas antes na tentativa de “desenvolver modelos matemáticos sobre como os animais se movem nos grupos e como a informação é transferida.” Ou seja, aprender como os animais aprendem juntos. A equipa testou ainda o software com moscas-da-fruta, outras espécies de peixes, formigas e ratinhos, mostrando que o programa também funciona nestas espécies, embora com um menor número de indivíduos.

Gonzalo de Polavieja admite que o idtracker.ai pode ser uma ferramenta útil para estudos ou outro tipo de tarefas com pessoas, mas atira essa responsabilidade para terceiros. “O nosso software é de acesso aberto. Quem quiser pode pegar nele e trabalhar isso”, sugere. Desde já, o que conseguimos antecipar é que é muito provável que o idtracker acabasse em poucos segundos com a diversão do desafio de procurar o Wally, aquele magricela de gorro e cachecol com riscas vermelhas que está frequentemente perdido no meio de uma multidão.

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