Magistraturas: entre o corporativismo desqualificante e o controle político incapacitante. Há solução?

E se em vez dos actuais três conselhos superiores passasse a haver apenas um Conselho Superior das Magistraturas, constituído em igual número por juízes, procuradores, advogados e pela “sociedade civil”?

O actual debate sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) levou-me a escrever este texto, no qual transmito as ideias que nos últimos anos tenho veiculado em vários fora, habitualmente a propósito da magistratura judicial.

É um facto inegável que temos que reconhecer na actuação recente da justiça o assumir de forma séria o combate à corrupção e outros crimes praticados pelos detentores do poder político, ao contrário do que era habitual, o que constitui um significativo avanço civilizacional, fundamental na construção e manutenção do Estado de Direito Democrático.

É também muito evidente o incómodo que esta evolução provoca nos habituais (quase) monopolizadores do poder político (PS e PPD/PSD), sendo a actual campanha dos dois partidos no sentido de alterar a composição do CSMP a face mais visível do referido incómodo e uma óbvia tentativa de controlar o Ministério Público e voltar à velha prática do poder executivo livre de qualquer fiscalização, visto que a que deveria ser exercida pelo Poder Legislativo na realidade não existe, devido à total dependência dos deputados das maiorias que suportam os governos em relação à direcção partidária que os nomeou para as listas (o recente episódio do IVA nas touradas é apenas a excepção que confirma a regra).

Mas a significativa evolução no combate à corrupção não pode fazer esquecer que o mundo da justiça, que é muito mais abrangente, vive confrontado com gravíssimos problemas, sendo que um dos maiores é a degradação da qualidade das decisões (tanto judiciais como do Ministério Público), que está directamente relacionada com a qualidade dos magistrados que as proferem e da respectiva formação, selecção, avaliação e disciplina, que, no que respeita aos dois últimos aspectos, resulta do seu carácter excessivamente corporativo e fechado.

E o facto de, no caso dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) não ter uma maioria de magistrados não é por si só garantia de maior qualidade da avaliação, por isso proponho um sistema mais abrangente.

A referida falta de qualidade é ilustrada pela grande quantidade de decisões judiciais inexplicáveis e inaceitáveis que, com cada vez maior frequência, são dadas à estampa na comunicação social.

Saindo do mundo mediático (no qual reconheço que muitas vezes as decisões são “adaptadas” para maior impacto), todos os profissionais da justiça, nomeadamente advogados, bem como os cidadãos que já foram vítimas dessas decisões, sabem ao que me refiro, visto que somos confrontados com uma frequência que ultrapassa a margem de erro admissível em qualquer sistema, com decisões totalmente absurdas, que em muitos casos envergonhariam um estudante do 2.º ano de Direito ou um cidadão dotado do mais elementar bom senso.

Não me refiro aos erros inevitáveis numa tarefa difícil, a de descobrir a verdade (quando frequentemente as várias partes e respectivas testemunhas mentem no tribunal) e aplicar adequadamente o Direito, nem sempre de fácil interpretação. Refiro-me sim às decisões totalmente irracionais, contraditórias não só com o que está no processo mas até em si mesmas e frequentemente acompanhadas de comentários totalmente despropositados, desnecessários e que nos levam a duvidar, não só do bom senso, como da imparcialidade dos seus autores.

Esta situação foi agravada com a adopção da regra da “dupla conforme”, que restringiu significativamente a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos em que os tribunais da Relação confirmam a decisão de primeira instância.

Há que encarar esta questão sem complexos, porque sendo tema de grande preocupação e incontornável nas discussões dos profissionais forenses (normalmente advogados, mas também em conversas privadas com magistrados mais abertos e conscientes do problema), é quase tabu na discussão pública, havendo um pudor generalizado em abordá-la, limitando a crítica à justiça à sua morosidade, como se a sua qualidade fosse um dado indiscutível.

Na minha opinião, a solução existe e, como na maior parte dos problemas, não passa pela opção entre uma das visões mais extremadas que se confrontam, cujo radicalismo normalmente leva a não melhorar o sistema e deixar tudo como está.

Considero que a forma mais equilibrada de manter uma total independência do sistema de justiça face ao poder político, combatendo simultaneamente a apropriação corporativa que impede uma verdadeira avaliação dos magistrados, é uma alteração profunda do actual sistema (que obriga a alterações constitucionais), passando a, em vez de existirem três conselhos superiores (da Magistratura para os juízes dos tribunais comuns, dos Tribunais Administrativos e Fiscais para os dos respectivos tribunais e do Ministério Público), haver apenas um Conselho Superior das Magistraturas (ou Conselho Superior de Justiça), constituído por membros de quatro origens (25% cada), designados, em igual número, pelos magistrados judiciais (juízes), pelos procuradores (MP), pelos advogados e pela “sociedade civil”.

A representação dos advogados é fundamental, porque além do conhecimento técnico e do sistema, constituem um dos pilares dos tribunais (até de uma forma mais abrangente do que o MP, que na jurisdição cível tem uma intervenção residual) e representam os respectivos utilizadores, sem risco de domínio político-partidário (basta olhar para as listas dos candidatos aos órgãos da Ordem dos Advogados para verificar que são bastante abrangentes).

Os elementos designados pela sociedade civil não poderiam ser oriundos de qualquer dos outros três “ramos” (juízes, procuradores ou advogados), nem nomeados por qualquer entidade directamente relacionada com os partidos políticos, podendo ser nomeados pelo Presidente da República ou estudar-se outra forma de designação.

A representação da sociedade civil é extremamente importante para garantir a visão do cidadão não “viciado” pelos formalismos jurídicos, que embora necessários, sobretudo para garantir direitos e evitar arbitrariedades, muitas vezes são encarados pelos profissionais do foro como fins em si mesmos.

Os membros do conselho deveriam também ter um mínimo de anos de exercício (no caso dos elementos das três profissões forenses) e de idade elevados, não só para garantir a necessária experiência, mas também para aumentar o grau de imunidade a pressões com reflexos na carreira.

Considero que a concretização desta proposta, que obviamente apenas aponta as grandes linhas e que tem que ser detalhada e completada em muitos aspectos que não cabem num artigo (aliás já longo), seria uma forma de melhorar significativamente um dos maiores problemas do sistema judicial.

Sugerir correcção
Comentar