Uma alegria ou uma pobreza franciscana?

Há uma alegria que nos cativa quando olhamos para estes homens e mulheres que fazem voto de pobreza. Olhamo-los como um exemplo a seguir – “deixa tudo e segue-Me”, terá dito o Senhor. E eles assim fazem, deixam a família, os amigos, e dão um exemplo de coragem, audácia, abnegação.

Destoa em relação às outras colegas que registam as compras nas caixas do supermercado. É baixa, roliça, simpática, parece quase uma avó, talvez até já o seja. Enquanto pago e não pago, atende o telefone, pergunta se pode fechar a caixa – falará com a sua supervisora, confirma-o depois de pousar o auscultador –, ri-se e conclui “é uma alegria franciscana”.

“Já viu, a minha chefe respondeu-me que tinha de ficar até ao fecho da loja. Era bonito, era… Era uma alegria franciscana” e volta a rir-se. Em vez de a corrigir – “a expressão não é alegria, mas ‘pobreza franciscana’” – limito-me a desejar-lhe uma boa noite e, empurrando o carrinho para fora da loja, vou entabulando um monólogo.

Não é alegria, mas "pobreza franciscana". Quando Francisco de Assis criou a ordem foi também como crítica à opulência da Igreja Católica e a um papado rico e corrupto. É "pobreza" porque eles, embora alguns fossem de famílias ricas, faziam voto de pobreza, andavam sobriamente vestidos e contavam com a generosidade dos outros. Até poderíamos falar de "alegria franciscana" porque a opção os deixava felizes, sentiam-se mais próximos de Jesus, também Ele um símbolo de pobreza.

Há uma alegria que nos cativa quando olhamos para estes homens e mulheres que fazem voto de pobreza. Olhamo-los como um exemplo a seguir – “deixa tudo e segue-Me”, terá dito o Senhor. E eles assim fazem, deixam a família, os amigos, e dão um exemplo de coragem, audácia, abnegação.

Lembro-me de na adolescência admirar estes homens e mulheres, fossem eles franciscanos, dominicanos, combonianos ou apenas leigos que consagravam a sua vida a Deus. Olhava-os com respeito, com admiração e houve momentos em que pensei que a felicidade podia estar ali, na dedicação total a Deus, no serviço ao outro, no sorriso de bondade e gestos altruístas que pareciam abundantes nas suas vidas.

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Quando Francisco de Assis criou a ordem foi também como crítica à opulência da Igreja Católica e a um papado rico e corrupto Natalie Behring/Reuters

A primeira desilusão aconteceu num retiro de Verão numa congregação. Ali estávamos todos, mais raparigas do que rapazes, a partilhar tarefas, a lavar louça numa enorme cozinha, a rirmos, a brincarmos, até que uma freira com alguma idade nos admoesta porque rir é pecado. Pecado? Então levamos as manhãs a rir, a cantar, a bater palmas com as outras irmãs e a senhora diz-nos que é pecado?, atira uma, mais atrevida. “São umas parvas, elas e vós”, responde, voltando a olhar-nos friamente e regressando à lavagem de um tacho gigante. Afinal, uma mulher de Deus pode ser muito infeliz.

Ah, é velhota, pouco terá saído da sua cozinha, não é como as outras que fizeram os seus doutoramentos em Salamanca e em Roma, que se sentem mulheres realizadas. E desculpamo-la. Mas o que dizer da freira pouco mais velha do que nós, de blusa de manga comprida e apertada até ao último botão, rente ao pescoço, num dia quente de Verão, que nos critica porque estamos de calções – dignos, que em inícios da década de 1990 não havia cá rasgões e rabos à mostra – e não estamos condignamente vestidas para entrar num local sagrado. Mas Jesus estava preocupado com isso?, volta a perguntar a mais atrevida, uma miúda do Norte. “Vesti-vos assim porque quereis que os rapazes olhem para vós”, diz-nos a jovem de cabelo cortado à tigela. “E queremos!”, responde outra, algarvia, fazendo-nos rir a todas. “Sois umas ordinárias…”, diz antes de se afastar, empurrando uma de nós. Uma mulher de Deus pode sentir rancor.

Fazemos queixa dela a um dos padres que nos acompanha e que, com um sorriso, pede desculpa. “A irmã anda nervosa.” Este sim, é um homem feliz e em paz com as suas opções, acreditamos, olhando-o com admiração. Anos mais tarde, chegado a bispo, desloca-se num carro de alta cilindrada e mantêm a distância, pedindo-nos que troquemos o “tu” por “Eminência ou Sr. Bispo”, que é “mais digno” da sua posição. Afinal, os homens de Deus também se deslumbram.

Ao longo dos anos, vamos procurando exemplos para dar aos nossos filhos, na certeza que Deus fala pela boca e pelo comportamento de homens e mulheres que se distinguem – sejam consagrados ou leigos. Volta e meia lá vem uma desilusão – porque as asneiras têm mais projecção do que os bons ensinamentos – e lá voltamos nós a pôr os pés a caminho, à procura de bons modelos para transmitir aos mais novos. E volto à “pobreza franciscana” e ao anseio que Francisco, o Papa jesuíta, com os seus sapatos coçados e com as suas palavras e gestos incisivos, seja um guia para uma Igreja que perdeu o brilho e teima em deixar de ser um sinal de esperança.

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