Nada é cindível na vida

Separamos, separamos, separamos tudo na vida. E se parássemos de separar? É que, afinal, no fundo, todos sabemos que “isto anda tudo ligado”.

No dia 31 de Dezembro, à meia-noite, (quase) toda a gente parou (mesmo que rodopiando num baile) a separar 2018 de 2019. “Ano Velho”, “Ano Novo”. Tendemos a classificar, a categorizar, a separar tudo. Os cientistas (e então os cientistas da Economia, quase tanto como os da Química, nem se fala!) dizem que é indispensável categorizar, separar (eles falam até em “isolar”) para compreendermos melhor.

Mas, não será para nos confundir ainda mais sobre o que já sabemos?
- Separamos o passado do presente e este do futuro, quando, no fundo, todos sabemos que o passado e o futuro são, como sempre foram, um contínuo presente (“como momentos de escolha e acção”[1]);

- Separamos o Homem da Natureza, quando, no fundo, todos sabemos que a natureza do Homem é fazer parte da Natureza;

- Separamos (e, perigosamente, separamos tanto!) a Terra da Humanidade, quando, no fundo, todos sabemos (bem, quase todos, há quem, como Trump, “não saiba”, digo, não queira saber) que sem Terra não há Humanidade;
- Separamos a economia da sociedade, quando, no fundo, todos sabemos (Karl Polanyi ensinou-nos bem isso) que a economia, como ciência social que é (deve ser), ou é (a) sociedade ou deixa de ser economia (para passar a ser mero economicismo);

- Separamos os negócios da amizade (“amigos, amigos, negócios à parte”) quando, no fundo, todos sabemos que, cada vez mais, perversamente, a própria amizade é objecto de negócio; e que até são certas “amizades” que possibilitam grandes negócios(atas);

 - Separamos a teoria da prática, quando, no fundo, todos sabemos que não há melhor teoria do que uma boa prática (ou vice-versa);
- Separamos o que dizemos do que fazemos, quando, no fundo, todos sabemos (aprendemos com Frei Tomás...) que o que dizemos, se não resulta do que fazemos, verdadeiramente, pouco diz; tal como sabemos que o que fazemos, se não resulta do que dizemos, verdadeiramente, pouco faz;

- Separamos o que somos do que fazemos, quando, no fundo, todos sabemos (aprendemos com Eduardo Galeano) que “o que somos é o que fazemos para mudar o que somos”;
- Separamos os pobres dos ricos, quando, no fundo, todos sabemos que “os pobres são pobres porque os ricos são ricos” (e vice-versa);
- Separamos o caminhar do caminho, quando, no fundo, no fundo, todos sabemos (aprendemos com António Machado) que “o caminho faz-se caminhando”;
- Separamos a saúde da doença, quando, no fundo, todos sabemos (aprendemos com a Organização Mundial de Saúde[2]) que “saúde não é só a ausência de doença”;

-Separamos a casa do trabalho quando, no fundo, todos sabemos que, pelas preocupações (e pré-ocupações), tantas vezes “levamos” a casa para o trabalho; como também sabemos que, pelos mesmos motivos e até literalmente, tantas vezes levamos o trabalho para casa;

 - Separamos a vida do trabalho quando, no fundo, todos sabemos que trabalhar é não só “ganhar a vida” como é (deve ser) ganhar vida; como também sabemos que o trabalho pode ser (e tantas, demasiadas, vezes é) perder (ir perdendo) vida ou, mesmo, num instante, perder a vida;
- Separamos, a vida da morte, quando, no fundo, todos sabemos que “a morte faz parte da vida”; e, mesmo, até sabemos, vendo como já vimos uma mãe (clinicamente) morta a dar à luz um bebé, que a vida (já) pode fazer parte da morte;

- Separamos a própria vida, em si, a infância da adolescência, esta da maioridade e, por sua vez, a maioridade da “idade maior”, da velhice. Quando, no fundo, todos sabemos que, na íntima interdependência destas ditas “primeira”, “segunda” e “terceira” idades, a vida é um presente contínuo.

Voltando à “passagem” de ano, do “Ano Velho” para o “Ano Novo”, nela, (quase) todos paramos (uma hora, uns minutos, uns milionésimos de segundo?) a separá-los.

Com umas passas, espumoso, música, fogo-de-artifício. E isso é sempre saudável, se não fisicamente (mas perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe), pelo menos socialmente. Mas, em regra, também aproveitamos a paragem para nos propormos, a “pés juntos”, citando José Mário Branco, “mudar de vida”.

Contudo, o “Ano Novo” vai ficando “velho” como apenas um novo ano e, também  por regra, adiamos, vamos adiando, essas proposições. E assim, a “vida nova” é, como sempre foi e vai continuar a ser para quase toda a gente, nem sequer nova vida mas apenas a mesma vida.

Sim, porque, toda a gente sabe que, para “mudar de vida”, é preciso, mais do que um calendário, um (novo)  ideário. Que não surge (apenas) no milionésimo de segundo da separação ( “passagem”) cronométrica de ano.
Separamos, separamos, separamos tudo na vida. E se parássemos de separar?
É que, afinal, no fundo, todos sabemos que “isto anda tudo ligado”[3]. É que afinal, no fundo, no fundo, todos sabemos (muitas vezes o ouvimos dizer a uma saudosa primeira-ministra - e portuguesa, pois então![4]) que “nada é cindível na vida”.

[1] Parafraseando Simone de Beauvoir: “O presente não é um passado em potência, ele é o momento da escolha e da accão”;

[2] "Saúde é um estágio de bem-estar físico, mental e social e não só a ausência de doenças ou enfermidades" (Carta de Princípios da OMS , de 7/4/1948)

[3] Poema de Eduardo Guerra Carneiro (4/101942 – 2/1/2004), cantado por Sérgio Godinho

[4] Engenheira Maria de Lurdes Pintassilgo (18/1/1930 – 10/7/2004 – primeira-ministra do V Governo Constitucional, de Julho de 1979 a Janeiro de 1980)

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