O gosto entre os likes e o (des)gosto

O sentido novo da palavra liberdade hoje é o da sua absoluta relação de identidade com a palavra emancipação e esta depende dessa outra, simples e tão complexa, chamada ler, saber ler, modo de ler, gosto.

Em que medida a questão do gosto é política? E mesmo a questão política hoje? Por uma razão simples e objectiva, é que tudo o que leva a decisões é narrativa e a narrativa pertence ao domínio do estético: mesmo que mau gosto ou ausência dele ou sem gosto dominantes.

Não há, no “espaço público”, nesse espaço em que agendas e posicionamentos, acontecimentos, erros e omissões com potencialidade narrativa — o olhar abutre é omnipresente —, realizações falhadas e conseguidas, jogo político tipo Portugal dos pequeninos, jogo maior tipo marca global, catástrofes bolsistas, crise previstas e tsunamis, nada mesmo, que não seja logo dado a ler como história, narrativas, mesmo que incoincidentes ou necessariamente incoincidentes — o facto morre à nascença, muitas vezes para alimentar a indústria da justiça, sempre ausente, tardia, muitas vezes inexistente — as excepções confirmam a.…

Eis que ler é portanto central na interpretação dos factos, isto é, estes não existem fora de uma leitura. A factologia pura não é a imagem, porque também aí e fundamentalmente aí — e há aquela coisa de que uma imagem vale por mil palavras, tolice de dizer quando se absolutiza — a narrativa está, é o ângulo, a posição da câmara, a pose do lucotor, a entoação preconceituosa da tarimba, a voz clichê, a voz off, a voz in, a legenda que substitui o facto por um olhar sobre o facto.

Por isso se diz a torto e a direito: qual é a leitura, qual é a tua leitura? Aí uma ilusão produtiva se alimenta, a de que tens espaço para fazer a tua ficção e que, sendo necessário a esse exercíco um fundo analítico justamente para desnarrativizar — (há fenómenos que nenhuma leitura, como elas são, com fio, sequência, climax, desfecho, mesmo com fecho adiado, sangue em ferida aberta, acrescenta o que for ao que é dado a ler mesmo que revele alguma originalidade, também aí há jogo narrativo, competição… e porventura em reacção — querem-nos reactivos e não activos — impotência cultivada, pois há narrativas sem saída, vivendo numa suspensão gerida do desfecho, justamente jogadas para que uma certa frustração e uma irracionalidade apensa tenham o seu papel) —, podes ir mais fundo e ler para além da narrativa, das narrativas, que te impõem — o que é verdade, mas não se generaliza, é sempre marginal, o virtuoso centro do palco está sempre ao serviço do protagonismo rendível, do maior e mais sonoro aplauso. Aí entra no jogo desde logo aquilo que neste modo de ler que vem do lado do “estado espectacular integrado” global já vem lido, com a sua implícita polémica e diferendo, supostamente a expressar posições, visões diferentes, dos mesmos fenómenos, o que, em boa verdade torna acientíficas — narratologias — o que se poderia tentar-se de aproximação a uma leitura que, no fundo, fosse dada por uma espécie de objectividade ineludível dos factos. Não existe. A comunicação estabelece logo liames narrativos — o facto é capturado quando surge —, histórias e as criaturas da comunicação — [e vivemos doentiamente a ligação constante, a engrenagem imparável dos fluxos de narrativas cruzadas no ciberespaço e em todos os espaços conexos, por exemplo no espaço dos afectos, agora tão religiosamente virtualizados em doses maciças de a tempo inteiro (aí um tipo de cegueira é culto, dependência toxicomunicativa)] — lá vão “pastando” nessa sucessão de “filmes” e “filmes” — também se diz “estás a fazer um filme disso ou daquilo” —  sobrepostos e paralelos, numa relação que vai de facto nos dois sentidos, por acumulação de camadas — uma espécie de fundo narrativo arqueológico em sobrealimentação constante e o que cobre a superfície, a última camada de pele ficcional.

Pelo que a questão que hoje se coloca nada tem com essa habilidade da desconstrução, que nasce do excesso da construção, desconstrói mas não “destrói” — não realiza a possibilidade de um recomeço essencial — e que, por assim dizer, necessita da construção para exibir a sua inteligência narcisa, de gesto próprio, por pura reacção antinómica.

A questão que se coloca é mesmo uma questão de gosto, de papar narrativas sem recuo, justamente pelo que têm de cegante, obnubilante, estupidificante, paralizante e mesmista — é nisso que estamos imersos, submersos, mesmo quando a narrativa se veste de argumentário, encadeamento lógico linear. Pensar é outra coisa.

Essa cegueira vinda da falta de gosto, quer dizer, de um exercício da leitura sem recuo, de um engolir da realidade com a força do óbvio — das suas formas elementares e das suas articulações complexas — virtualizada como se fosse o que se lê do lado do conforto próprio, das limitações e da lógica do sistema — ao serviço do — é que faz os “populismos” de todo o tipo.

Ler é de facto e cada vez mais uma actividade que só se aprofunda em presença e numa espécie de descodificação dramatúrgica constante, palavra a palavra, imagem a imagem, referência a referência, frase a frase — fotograma a fotograma—, destapar de sentidos por detrás dos sentidos que se lêem e que procede de duas formas: a leitura vertical que vai à matriz do sentido camada a camada, escavando — e ler é escavar — e a da leitura do que se exibe na superfície e que é de uma ambiguidade “suficientemente polémica” para dar do real uma imagem rica de diversidades supostas, quando os aparelhos da sua produção o que “criam” é homogeneidades. É bem verdade no entanto que as realidades do real são complexas e não existem fenómenos isolados a não ser para uso metodológico, meter a pinça no que se isola, microscopias — que nos trazem sempre verdades parciais.

Nada disto é novo. A mediação é hoje a realidade que se consome e a realidade dada a consumir já que tudo está sob alçada do princípio do lucro e das audiências, do primado da estatística e do número sobre a verdade — a verdade é o que a massa depois comprar como sua no seu ciberespaço, em todas as suas formas e na relação permanente com o fluxo.

Aonde queria chegar? A mudança, dizendo de outro modo, a revolução, é substancialmente uma questão estética. Na era do “capitalismo cultural, especulativo, fetichista” essencial é emancipar o gosto, uma dada dependência de modos de ler que levam o sujeito leitor numa identificação reconfortante, o que, em boa verdade, faz da leitura um espelhamento, um gesto menor, terapêutico.

O sentido novo da palavra liberdade hoje é o da sua absoluta relação de identidade com a palavra emancipação e esta depende dessa outra, simples e tão complexa, chamada ler, saber ler, modo de ler, gosto. O que nada tem a ver com a noção convencional de alfabetizado, mesmo do leitor apto a ler bulas.

É um outro mundo e nós estamos ainda a usar categorias de mundos passados. A expressão “cadáver adiado que procria” é muito justa aplicada agora a uma escala interinstitucional, macro e individual - ler é escapar ao que já vem lido.

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