Vinho do continente com rótulo dos Açores: fraude ou delírio?

Amigos açorianos: o mundo não está contra vós. O mundo gosta muito dos Açores. Normalmente, somos mais exigentes com aqueles de que gostamos mais. Mas estão a disparar na direcção errada. O inimigo não está no continente. O inimigo dorme convosco.

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Miguel Manso

O vice-presidente da Adega Cooperativa do Pico, Daniel Rosa, denunciou, em declarações à RTP Açores, estar a ser vendido vinho importado do continente com o selo açoriano. Como os açorianos são muito susceptíveis e sensíveis, transcrevo aqui o essencial das suas afirmações: “Está-se a importar muito vinho a granel para os Açores, está-se a criar uma imagem de que, mesmo não sendo certificado, este vinho é açoriano e isso é muito prejudicial para quem está a começar. (…) Os duzentos e tal mil litros que foram importados e que foram, através de selos do IVV, colocados no mercado e muitas vezes nesses rótulos dando uma imagem de serem vinhos açorianos, meus senhores, isso pode ser o caminho do fim." E disse mais: “Vinhos nos Açores têm que ser feitos com uvas dos Açores. Importar vinhos do continente, engarrafá-los, embelezá-los, dizer que eles são açorianos e colocá-los no mercado açoriano, como está acontecer neste momento, desculpem, mas alguém não anda a cumprir com a lei.”

A partir desta denúncia, o jornal Açoriano Oriental, através de João Nuno Almeida e Sousa, ampliou o tema, escrevendo: “Ouvimos de quem sabe o que há muito suspeitávamos: há fraude na marca Açores. (...) A denúncia aí está irremível e feita pela Cooperativa Vitivinícola do Pico. Peremptório, o seu presidente [na verdade, foi o vice-presidente], afirmou que foram importados para a região 200 mil litros de vinho a granel processado, caldeado, martelado, engarrafado e vendido como vinho dos Açores. Tudo, disse, com a cumplicidade do Instituto do Vinho e da Vinha, com o conhecimento do Governo regional e o oportunismo de algumas cooperativas.”

Num editorial, o Diário Insular, da ilha Terceira, não elucubrou e exagerou tanto, mas disse isto: “Há muito que se suspeitava da utilização do nome Açores para introduzir no mercado, com a mais-valia da nossa designação, vinho que não é produzido na região”. E o jornal Correio dos Açores acrescentou: “Bem bom que surge este alerta para que a fiscalização actue e faça com que nenhum vinho do continente possa passar por vinho dos Açores e com selo de garantia dos Açores.”

Estão ver o fio condutor das queixas? Alguém nos Açores anda a vender gato por lebre (se é que anda), mas as culpas também são atiradas para o Instituto do Vinho e da Vinha (IVV) e para quem exportou o vinho desde o continente. Amigos açorianos: o mundo não está contra vós. O mundo gosta muito dos Açores, das suas paisagens, dos seus vinhos, das suas comidas e das suas gentes. Normalmente, somos mais exigentes com aqueles de que gostamos mais. Mas, tal como na polémica dos herbicidas no Pico, voltam a disparar na direcção errada. O inimigo não está no continente. O inimigo dorme convosco.

Os vinhos são controlados de duas formas: pelas comissões regionais de vitivinicultura, a quem compete aprovar e certificar os vinhos com o selo DOP (Denominação de Origem Protegida) ou IGP (Indicação Geográfica Protegida); e pelo IVV, tratando-se de vinhos não certificados, os chamados vinhos de mesa (a designação “vinho de mesa” acabou, agora é apenas “vinho”). No caso dos vinhos a granel, se estes forem provenientes de uma região ou de um país diferente, nunca poderão ser classificados como DOP ou IGP.

Um exemplo: parte do vinho que o produtor duriense Carlos Alonso (marcas Piano, entre outras) vende em bag in box é proveniente do Chile. Claro que muitos consumidores associam Carlos Alonso ao Douro e julgam estar a beber um vinho desta região. Mas o produtor não está a cometer nenhuma fraude, uma vez que o vinho é vendido com o selo do IVV. Só existiria fraude se o vinho importado fosse vendido com o selo DOP ou IGP. O que se pode questionar é a razão que leva um produtor do Douro a comprar vinho do Chile (o preço baixo, claro).

Há quem venda, de forma ilícita, vinho importado com o selo DOP ou IGP? Há. Em várias regiões do país. O IVV já multou muitos produtores fraudulentos (prestaria um grande serviço público se revelasse os nomes). O IVV controla todo o circuito do vinho não certificado? Não. Teria que ter um fiscal em cada adega. Só controla, por amostragem, uma parte dos produtores e engarrafadores escritos.

É possível, por isso, que esteja a ser vendido algum vinho importado do continente com o selo dos Açores. Mas de quem é a culpa? Não é dos açorianos que cometem a fraude? Não é da Comissão Vitivinícola Regional dos Açores que prova, aprova e atribui o selo DOP ou IGP a um vinho comprado fora? Se a CVR dos Açores, depois de analisado o vinho, atribui um selo desta região a um vinho de Torres Vedras, por exemplo, a culpa é do vendedor de Torres Vedras? E é do IVV? Onde o IVV pode falhar é na aprovação de certos rótulos de vinhos não certificados, que induzem claramente o consumidor em erro, levando-o a associar o vinho a uma denominação protegida.

Não sei se é esta a falha que o vice-presidente da Adega Cooperativa do Pico atribui ao IVV. Daniel Rosa também não identifica os prevaricadores, pelo que nem a própria cooperativa de que é dirigente fica livre da suspeita. Mas quem está ligado ao vinho dos Açores sabe que um dos visados na sua denúncia é a empresa Curral Atlantis, também do Pico. As suspeitas são antigas e advêm do facto de este produtor comercializar brancos e tintos (sobretudo através da marca Farias's Vineyard) a preços mais baixos do que é normal para vinhos dos Açores (uns com o selo dos Açores, outros com o selo do IVV). Um dia perguntei ao proprietário da Curral Atlantis de onde vinham as uvas para esses vinhos, uma vez que a produção própria não seria suficiente para tanta marca e tanto vinho comercializado. A resposta dele foi desarmante: “Vêm das vinhas”. E não mentiu.

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