Matera: o renascimento da cidade maldita

Proscrita para os italianos na segunda metade do século passado, a capital da Basilicata, pobre, remota e selvagem, tantas vezes ignorada, já integrava, em 1993, a lista de Património Mundial da UNESCO. Agora celebra a cultura durante todo este ano.

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Luca Lancieri
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Catedral Madonna della Bruna DR
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Igreja de Santa Maria de Idris DR

Quando o começo a escutar acredito que, se fosse humanamente possível, Paolo Verri estaria a falar de Matera, sempre de forma apaixonada, ainda no próximo século.

- A primeira vez que visitei Matera foi já há muito tempo. Mas tenho a recordação bem vívida do que senti, caminhando por entre os sassi, de me encontrar num espaço único que, dotado da presença humana, parecia também um lugar de Deus, começa por admitir o director-geral da Fundação Matera-Basilicata 2019.

Por sugestão deste homem de 52 anos, natural de Turim, apaixonado pela cultura, pelo futebol (é presidente do clube Osvaldo Soriano e da selecção nacional de escritores) e pelas viagens, planto um primeiro olhar demorado em Matera desde o Parco della Murgia (também designado – e capaz de cansar - Parque Regional Histórico Natural das Igrejas Rupestres de Matera), de onde obtenho a melhor panorâmica sobre a cidade à qual ainda tardo a regressar para melhor explorar este lugar tão carregado de misticismo.

Com uma área a rondar os 8000 hectares, com gargantas profundas, com trilhos, com cascatas e grutas utilizadas pelo homem desde tempos de antanho, o parque torna-se sedutor durante um bom par de horas, ainda assim insuficientes para admirar cerca de centena e meia de igrejas rupestres, entre elas a admirável Cripta do Pecado Original, também denominada Cripta dos Cem Santos ou Capela Sistina da arte rupestre, com um conjunto de frescos do século IX que nos remetem para o Livro do Genésis.

Do outro lado, contrastando com a sombra que se espalha pela garganta profunda, o sol brilha sobre aquele puzzle de pedra que, tal como Plovdiv, reclama o estatuto de uma das cidades mais antigas do mundo. Os raios incidem sobre os sassi (as pedras), aquele labirinto de menos de 30 hectares presidido pelos seus dois bairros centrais, o sasso Caveoso e o sasso Barisano, e elevando-se, naquela brancura leitosa e contra um céu azul, pela falésia calcária.

Admiro mais uma ou outra das igrejas do Parco della Murgia, de todo este cenário que inspirou cineastas e cujas imagens nos terão passado despercebidas, como n' O Evangelho Segundo São Mateus (de Pier Paolo Pasolini) ou A Paixão de Cristo, realizado, precisamente 40 anos depois, em 2004, por Mel Gibson.

- Matera é do agrado de todos, até das crianças, que aqui podem caminhar, brincar, esconder-se e partilhar a atitude de, embora vivendo no passado, terem também a perspectiva de um lugar do futuro, um lugar do Star Wars, por exemplo.

Recordo as palavras, a visão romântica, de Paolo Verri enquanto contemplo pela última vez, desde o Parco della Murgia, os sassi.

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- E é um lugar onde se partilha o amor e a amizade. Nos sassi, os rapazes também gostam de brincar, de saltar de casa em casa, de se esconderem com as raparigas para trocar um beijo.

Extrema pobreza

É quase impossível, caminhando por Matera, ignorar o passado daquela que ficou conhecida, em tempos e entre os italianos, como a cidade maldita. Um dos lugares pré-históricos mais antigos da Europa, testemunha da presença humana logo após o Paleolítico, Matera, a trogolodita, foi declarada vergonha nacional nos primeiros anos da década de 1950 pelo então Presidente do Conselho Italiano, Alcide de Gasperi, a que se seguiu a promulgação de uma lei que impunha a evacuação de 15 mil dos seus habitantes, deixando praticamente órfão, até 1990, o seu coração histórico – e as pessoas sentiram-se de repente estranhas, deslocadas para um outro espaço, sem saberem onde colocar os seus animais, admiradas por verem a água a correr de uma torneira.

Nesse tempo, os habitantes de Matera viviam em condições de extrema pobreza, em grutas escavadas na pedra, sem ventilação, sem luz natural, sem electricidade e água corrente, famílias com nove e dez filhos, partilhando espaços já exíguos com burros, porcos e galinhas – dessa realidade deu conta, em 1945, Carlo Levi (enviado para o exílio em 1935 pela ditadura de Mussolini para a região do Mezzogiorno), em algumas linhas do livro Cristo parou em Eboli (mais tarde, em 1979, adaptado ao cinema por Francesco Rosi). "Em toda a minha vida nunca vi semelhante quadro de pobreza", assegurava o escritor natural de Turim.

Com pouco mais de 60 mil habitantes, a capital da região tantas vezes ignorada da Basilicata, para uns pobre, para outros remota, para outros, ainda, selvagem, é um exemplo de vida, morte e ressurreição – como um deserto (de habitantes) transformado num oásis (de turistas), talvez porque foi o primeiro lugar em todo o Sul de Itália a integrar, logo em 1993, a lista do Património Mundial da Humanidade da UNESCO.

Nos dias de hoje, de esplendor, Matera exibe uma face mais moderna (uma lei de conservação, de 1986, protege o exterior das casas), muitas dessas caves foram transformadas em hotéis de luxo, abrindo caminho à especulação imobiliária. De ano para ano, tem vindo a aumentar o número de turistas e, a exemplo do que acontece  noutras cidades italianas, são cada vez mais aqueles que alugam as suas casas, retirando identidade aos sassi.

- Na verdade, o turismo mudou Matera nos últimos cinco anos. No início, os residentes sentiam-se orgulhosos e felizes por receberem os turistas na cidade que em tempos fora a vergonha de Itália, o lugar onde ninguém quis voltar durante mais de 30 anos, agora declarado Património Mundial da UNESCO e visitado por turistas de países tão distantes como a Nova Zelândia, a China ou o Japão, começa por observar Paolo Verri.

Atrás deles, à medida que se iam escutando os ecos do renascimento da cidade, chegaram italianos de outras localidades para aqui se fixarem e, de acordo com um estudo recente da Universidade de Siena, mais de 25% das casas de Matera estão disponíveis para alugar no Airbnb, um número sem paralelo em todo o país.

- Como sucede um pouco por toda a Europa, em cidades grandes e mesmo nas mais pequenas, assiste-se a um novo fenómeno de turismo de massas que conduz a uma reflexão sobre a relação entre a cidade e o turista. É nesse sentido que estamos a trabalhar, na redifinição dessa relação, em alargar a oferta turística a outras zonas de Matera, retirando pressão aos sassi, assume Paolo Verri.

Alguns desses passos começam a ser dados já a partir do próximo sábado, 19, dia da cerimónia de abertura de Matera-Basilicata 2019, com um conjunto de eventos que abrange diferentes áreas da cidade e com a criação de um passaporte (adquirido por 19 euros e que dá acesso a todas as iniciativas, ainda que em alguns casos seja necessário reservar antecipadamente), o temponaut, uma medida que pretende transformar o viajante num cidadão temporário de Matera, incentivando-o a um maior diálogo com a população residente.

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Não é por acaso que Matera adopta o lema "Open Future" durante este ano de grande importância para a cidade.

- Estamos empenhados em desenvolver uma estratégia que permita manter a qualidade de vida numa cidade média/pequena como Matera. É necessário perceber como é possível reconfigurar o futuro das cidades europeias desta dimensão e esta é uma grande oportunidade para redifinir esse papel, convidando as pessoas a investir na criatividade e na cultura. Daí o lema de Matera, "Open Future", porque essa é uma oportunidade que não está na mão dos políticos mas sim nas mãos do cidadão comum, assegura ainda Paolo Verri.

Com diferentes projectos em carteira até ao final do ano, Matera foca-se em cinco temas que servirão de base para todas as iniciativas. O Futuro Remoto é um deles, na perspectiva de provocar uma reflexão sobre a relação milenária entre a humanidade e o espaço e as estrelas, seguindo os passos de um dos mais notáveis residentes de Matera, Pitágoras, enquanto se explora a beleza universal da Matemática e se analisam as infinitas possibilidades de diálogo entre o homem e a natureza, proporcionando momentos culturais em espaços físicos tão distintos como as igrejas rupestres ou o Centro Geodésico Espacial.

Continuidade e Ruptura é outra das temáticas a explorar, focando-se na relação de conflitualidade de Matera com a modernidade e na possibilidade de uma terapia colectiva que afaste os fantasmas dessa cidade maldita, dessa outrora vergonha nacional, sem deixar de despertar o cidadão para a crescente desigualdade social, para o ressurgimento do racismo e para todos os problemas sociais em continentes como a Ásia e a África.

Num século marcado pela pressa, pelo ritmo frenético de vida, Matera também procura despertar o visitante para uma redescoberta dos valores do tempo e da calma através do tema Reflexões e Conexões, enquanto Utopia e Distopia, outra das temáticas, pretende afastar os preconceitos que pairam, como fantasmas, sobre esta cidade do Sul de Itália,  alertando, ao mesmo tempo, para a necessidade de uma profunda mudança numa mentalidade fatalista.

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Finalmente, Matera também se revê no tema Raízes e Percursos, na mobilidade da Europa e da própria região desde tempos ancestrais, como espaço de encontro e de convergência de diferentes povos até se chegar aos dias de hoje, do regresso da diáspora, de uma geração de jovens atraídos pelos valores da cultura meridional.

E, um pouco por todo o lado, cruzo-me com italianos (mas também investidores estrangeiros) que gozam desta ressurreição de Matera, desta nova bênção que cai sobre a cidade em tempos amaldiçoada. Deito um olho às profundezas do fosso da Gravina e começo a subir ao longo de ruas estreitas até chegar à Piazza del Duomo, dominada pela imponente catedral do século XIII, com as suas influências normandas, lombardas e orientais. Ao lado, na antiga igreja de Santa Maria di Costantinopoli, está bem guardada a Madonna della Bruna, a santa padroeira de Matera que é celebrada, com uma procissão, todos os anos, a 2 de Julho. De novo no exterior, sigo ao longo da Via Duomo, ao encontro da igreja de San Francesco d'Assisi (século XIII) que presta homenagem à visita de São Francisco a Matera, em 1218.

A cidade percorre-se a pé, sem pressas, apelando a uma atenção permanente aos pequenos detalhes de uma paisagem invulgar. Mesmo que Paolo Verri deseje alargar Matera, convidando os turistas a não se focarem apenas nos sassi, dificilmente algum deles deixará de passar a maior parte do tempo nestes labirintos de um tempo que não parece ser do nosso tempo. Permito que os meus passos me conduzam sem destino definido pelo sasso Barisano e sem grandes demoras deixo que a minha boca se abra de espanto nesse magnificente complexo monástico (usado por monges beneditinos de origem palestiniana no século XIII) composto pela Madonna delle Virtù e de San Nicola del Greci, com dezenas de grutas que se espalham por dois andares. A primeira foi construída no século X ou XI e restaurada já no século XVII, a segunda destaca-se pela riqueza dos seus frescos.

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Mais tarde, sempre nesse ritmo tranquilo que suporta um dos temas de Matera como Capital Europeia da Cultura, vou errando agora pelo Sasso Caveoso, prestando culto à Chiesa di San Pietro Caveoso, admirando os frescos em Santa Maria d'Idris e, já na Via la Vista, à de Santa Lucia alle Malve, até regressar a esse passado de condições de vida extremas que tão bem retrata a Casa-Grotta di Vico Solitario, como um testemunho vivo dessa convivência (com graves consequências na taxa de mortalidade infantil) entre homens e animais.

Ainda disponho de tempo que deixo correr quando aprecio a Piazza Vittorio Veneto, o coração histórico de Matera, com o seu palombaro lungo, uma enorme cisterna construída na primeira metade do século XIX como reserva de água para os habitantes de Sasso Caveoso. E daí avanço até outra praça, a Piazza del Sedile, em tempos o coração político de Matera, hoje abraçada por bares e restaurantes que são mais uma prova do renascimento da cidade maldita.

A vida fervilha em Matera.

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