Uma casa do século XIX, com certeza

No centro histórico de Viana do Castelo, João Correia e Alda Iacovino abrem as portas da sua Casa Manuel Espregueira e Oliveira a quem quer recuar no tempo.

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João Correia entrou naquela casa pela primeira vez em 2000. Ficou apanhado. “Senti que aqui estava uma coisa diferente, senti que aqui estava uma obra de arte.” Não fez logo negócio. O preço era excessivo. Volvidos quatro anos, a casa ainda lá estava. Fez a escritura sem saber que destino lhe dar.

O destino a dar à casa, construída em meados do século XIX, acabou por se impor ou, pelo menos, emergir da sua história. “Foi a casa e a história de quem a habitou que nos despertaram.” Não de todos. De Luiz Augusto de Oliveira (1851-1927), um médico, militar e coleccionador de arte, que a comprou em 1900 e que foi o primeiro director do Museu Regional de Viana do Castelo, hoje Museu de Artes Decorativas. E do seu filho, Manuel Espregueira e Oliveira (1888-1953), que a herdou, foi vereador na Câmara Municipal de Viana e deputado na Assembleia da República.

Aqueles habitantes não foram só dois homens ilustres no seu tempo. Também beneméritos de Viana do Castelo. Manuel Espregueira e Oliveira deixou o espólio do pai à cidade. Ainda lá está, a menos de 200 metros, no museu instalado no Largo de São Domingos. Mobiliário, louças, telas, desenhos.

Quando João e a mulher, Alda Iacovino, se sentam a contar essa história, ela detém-se num detalhe determinante: “Tivemos acesso ao testamento e ficámos a saber que o doutor [Luiz Augusto de Oliveira] dizia que tudo o que construiu gostaria que a humanidade tivesse acesso.” Iam recuperar uma casa do século XIX, dar-lhe o conforto do século XXI e abrir as portas, como unidade de turismo de habitação.

Nem João, nem Alda tinham experiência no sector do turismo. Ela, nascida no Rio do Janeiro, no Brasil, e a residir em Portugal desde 1984, trabalhava como técnica oficial de contas e dava aulas de Economia e Gestão na Universidade Fernando Pessoa, no Porto. E ele, nascido e criado em Viana do Castelo, a trabalhar por conta própria desde os 14 anos, geria a sua própria empresa no sector de construção civil.

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A crise económica e financeira, que despontou nos EUA em 2008 e depressa cruzou o Atlântico, afectando de forma particular os países do Sul da Europa, também ajudou a determinar o futuro da casa. A construção civil estava quase paralisada.

“Perguntei-me o que podia fazer pelo meu país e pela minha gente”, recorda João. Convenceu-se de que recuperar aquela casa era ajudar a atrair mais visitantes, logo, mais negócio. “Temos aqui um museu. Tectos de estuque de Afife, azulejos pintados à mão em Viana, talha da zona de Braga. E tudo isto ajuda a divulgar a nossa cultura, a nossa arte, a nossa história.”

Nem imaginava no que se estava a meter. “Ainda hoje, quando vejo as fotografias, me pergunto como consegui.” 

Os trabalhos arrastaram-se mais de quatro anos. Começaram em Setembro de 2009 e terminaram em Abril de 2013. Amiúde, surgiam problemas sem solução evidente. Havia que “pensar muito” e que “falar com várias pessoas”.

Até pelo grau de exigência, ninguém se podia precipitar. “O objectivo era manter a traça, recuperar tudo o que era arte, não estragar, o que requer muita calma e conhecimento.” E a experiência profissional de João não o salvava de tudo. “A minha especialidade era construir, não era recuperar. Era preciso ter as pessoas certas. Não tinha gente para recuperar estuques ou azulejos pintados à mão. Tiveram de vir de Espanha duas pessoas para dar formação em belas artes.”

Valeu-lhe ter ouvido o encarregado, que o aconselhou: “Você só tem uma hipótese: fazer isto divisão a divisão, cada vez que uma ficar pronta, fechar a porta e partir para outra; se fizer tudo ao mesmo tempo, vai desistir da obra.” Agradece-lhe até agora. “Muitas vezes saí daqui para não atirar a toalha ao chão.”

Alda gaba o profissionalismo do arquitecto Coutinho Ramos, que acompanhou tudo com grande dedicação. E João lembra a derrapagem orçamental, que os levou a vender a casa na praia, a autocaravana dos seus sonhos e o carro de cada um para evitar recorrer à banca. Até porque também era preciso encontrar móveis, candeeiros e outros adereços condizentes.

“Quando começámos a recuperação da casa, também começámos a procurar mobiliário. Não apareceu todo de imediato. Foi aparecendo”, diz ele. Alda estranhou a prática do Turismo de Portugal, que comparticipa a compra de mobiliário novo, não a de antigo, reduzido à categoria de segunda mão.

Com tempo, foi ficando tudo à imagem de ambos. Ela, que deixou de exercer a sua profissão para se dedicar a tempo inteiro à Casa Manuel Espregueira Oliveira, usa a expressão "projecto-paixão". Ele, que manteve a empresa de construção, lembra o espírito de sacrifício e a capacidade de correr riscos. “Quando abraçamos projectos deste género há sempre riscos grandes.”

A idade – ela está com 62 anos e ele com 58 – ajuda-os a reposicionar as prioridades. “O que está construído está construído e agora temos de nos ficar por objectivos de realização mais espiritual”, diz ela. “O que nos interessa hoje é partilhar. Para nós, hoje, qualidade de vida é viver com pessoas de todo o mundo.”

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Nelson Garrido

Alda fala com gosto desta nova carreira, desta nova vida: “É muito boa. Há um intercâmbio cultural muito grande que nós apreciamos. Isto é um turismo de habitação. E o conceito é que os anfitriões convivam com os hóspedes. Nós convivemos, fazemos amigos, trocamos contactos. É muito gratificante.”

No primeiro andar, o casal e os seus hóspedes. Partilham a cozinha, o salão de estar, o salão de jantar, a pequena biblioteca. Dormem numa suíte situada nesta cota da casa, embora rodem pelas outras, no piso superior, quando a ocupação o permite, para irem reavaliando os detalhes, fazendo acertos.

A casa integra seis suítes, cada qual com o nome de uma flor. Para lhes aceder há que subir a escadaria de madeira até ao fim, porventura apoiando-se no corrimão de pau-rosa, sob a belíssima clarabóia. Em cada uma, trabalhados tectos de estuque, impecável chão de soalho, mobiliário clássico e escolhido a dedo, longos cortinados, vista para o mar, o rio Lima ou o monte de Santa Luzia.

O piso térreo abre-se à cidade. Para lá da recepção, o salão multiusos e um jardim, que tanto podem ser alugados para eventos particulares, como baptizados ou casamentos, como cedidos para eventos públicos, como apresentações de livros ou exposições de pintura, fotografia ou outras formas de arte.

Com eles trabalham Tiago de Oliveira, arquitecto paisagista, e Cipriano Oquiniame, artista plástico. Mesmo assim, não têm parado. “Desde 2009, não houve mais férias”, diz ele. Primeiro, a pesquisa, a obra, a decoração. “Dia e noite íamos para a Internet. De vez em quando, íamos à biblioteca, íamos a museus.” Depois, abrir a casa. Encontrar forma de a dar a conhecer a potenciais clientes. Só agora decidiram parar duas semanas. Diz-lhes a experiência que depois das festas vem a quietude.

A Fugas esteve alojada a convite da Casa Manuel Espregueira e Oliveira

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