A televisão é um instrumento de poder. Não brinquem com ela!

O que distingue um órgão de comunicação do universo descabelado das redes sociais é a responsabilidade de mediar editorialmente um convidado como Machado. A TVI não esteve à altura dessa responsabilidade.

O ano de 2019 começou de forma insólita, com o convite da TVI ao criminoso fascista Mário Machado no dia 3 de janeiro, para discutir a necessidade de um novo Salazar com os ouvintes e animadores do programa. Dos vários argumentos surgidos na última semana para defender a TVI, falou-se bastante da liberdade de expressão.

A liberdade de expressão, como a propriedade privada, outro direito fundamental, tem os seus limites. John Rawls, um filósofo da Universidade de Harvard, que morreu em 2002, é o fundador de uma das correntes filosóficas modernas mais importantes para discutir ética social – o liberalismo igualitário. Rawls recebeu do Presidente Bill Clinton a “National Humanities Medal” como reconhecimento da sua longa carreira académica, em 1999. Clinton diria então que o trabalho de Rawls “ajudou uma geração de americanos a recuperar a confiança na própria democracia”.

Para Rawls, uma sociedade justa deve garantir a todas as pessoas, sem distinção, um conjunto de liberdades fundamentais, articuladas de forma a garantir que possam ser exercidas no seu conjunto. Para Rawls, a regulação das liberdades fundamentais deve ser discutida no plano dos direitos. E dá o seguinte exemplo. Imagine uma lei de serviço militar obrigatório que exclua os jovens com melhores resultados na escola, com o argumento de que estes empregam melhor o seu tempo a estudar e trabalhar, já que toda a sociedade ganha com isso. Segundo Rawls, esta lei é inaceitável, dado que usa um argumento económico para justificar uma exceção a uma liberdade fundamental. Se a sociedade entende que o serviço militar, que é uma limitação da liberdade individual, é necessário para a sobrevivência da coletividade, então essa restrição tem de aplicar-se a todas e todos igualmente. Exceções no plano das liberdades – por exemplo, a de consciência dos pacifistas – já admitem discussão no universo de John Rawls.

Acontece que Mário Machado é conhecido e foi condenado por ter usado o seu discurso para incitar outros à violência contra pessoas, como no caso do português Alcindo Monteiro, assassinado numa sinistra noite de junho nas ruas de Lisboa, e da procuradora Cândida Vilar, que tinha investigado a atividade criminosa de Machado e dos seus companheiros skinheads. A liberdade de expressão de Machado atropela direitos fundamentais de outras pessoas: o direito à integridade física, à reunião social nas ruas da cidade, a não serem sujeitas a detenção arbitrária (sim, na extensa lista de condenações de Machado também há o crime de sequestro). A mim parece-me evidente que a liberdade de expressão protege o direito a defender Salazar na televisão. Também não tenho problemas com a entrevista a um culpado de crimes de sangue, desde que surja enquadrado enquanto tal, ao invés de o equiparar a um pensador da direita conservadora, assim branqueando o seu passado criminoso. O que distingue um órgão de comunicação do universo descabelado das redes sociais é a responsabilidade de mediar editorialmente um convidado como Machado. A TVI não esteve à altura dessa responsabilidade.

O segundo argumento que apareceu para defender a escolha da TVI é uma certa complacência que podemos resumir assim: “deixem lá isso, que o homem é um grunho e até é bom deixá-lo falar, porque assim as pessoas percebem que ele é grunho; não é o programa do Goucha que o vai ajudar a angariar acólitos.” Acontece que a televisão é um instrumento de poder. Num conhecido artigo publicado em 2007 no Quarterly Journal of Economics, os economistas Stefano Dellavigna e Ethan Kaplan analisam o impacto da cadeia de notícias conservadora Fox News nas eleições de 2000. Como o canal, difundido por cabo, não estava disponível em todo o território americano simultaneamente, os autores calculam o ganho eleitoral do Partido Republicano entre as eleições de 1996 e 2000, comparando as localidades em que a Fox News estava disponível com as restantes. Os autores calculam que a Fox News terá convencido cerca de 200 mil eleitores a votarem republicano. Na Florida, onde depois de uma recontagem seguida ao minuto em todo o mundo George W. Bush ganhou a Al Gore por 537 votos, estimam que a Fox News terá convencido cerca de dez mil eleitores a votar em Bush. Isto não acontece apenas na democracia americana. Outro artigo influente, publicado na American Economic Review em 2011 por Ruben Enikolopov, Maria Petrova e Ekaterina Zhuravskaya, economistas russos, mostra que a introdução da televisão independente na Rússia levou o Partido da União, de Putin e Yeltsin, a perder um quarto do seu eleitorado nas legislativas de 1999, em favor dos partidos da oposição.

Nas palavras do próprio Putin, citado por estes académicos, “contrariamente à percepção comum, os media são um instrumento, e não uma instituição”. É provável que Mário Machado também saiba disto. Não sejamos nós os ingénuos.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico 

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